terça-feira, 22 de outubro de 2013

Primeiras páginas do livro "RETORNO AO PÓ"


          Silêncio. Tudo se resumia num perturbador e completo silêncio. Nada, exterior ao seu corpo, fazia mais sentido e não conseguia pensar na palavra “futuro”. Depois de todos os acontecimentos em sua vida, não era mais necessário preocupar-se com ela.
          Catharina França, hoje com trinta anos, encontrava-se com os olhares perdidos ao longe, aprisionada solitariamente numa cela com menos de oito metros quadrados, pensando como num rápido filme em todas as coisas boas e ruins que outrora sucederam e como pôde se deixar enlouquecer, no sentido mais amplo da palavra, com os amores, traições, desafetos e uma grande dúvida sobre vingança. A cela onde estava era suja, com suas paredes mofadas pela umidade e com alguns rabiscos e nomes, levando-a ao extremo da claustrofobia, com a impressão de ser esprimida por aquele pequeno cubo. No seu interior, havia apenas um colchonete estendido sobre o chão e um pequeno e fino cobertor para que pudesse se cobrir. Lá fora, o dia era claro e quente, deduzido pelos poucos raios de sol que penetravam através de um pequeno buraco por cima de sua cabeça, mas o frio que sentia, em virtude de uma febre alta, era de congelar fazendo seus lábios tremerem e seus dentes rangerem, produzindo um pequeno som que, adicionado a um fraco gemido, resultado de um inexplicável cansaço, acabava por eliminar em parte o silêncio caótico do lugar.
            Já  fazia duas semanas desde o seu encarceramento e estava difícil de tirar aquele dia da memória. O dia em que, sem saber até o momento a cronologia e a veracidade dos fatos, assassinou o seu grande amor ou aquele que um dia ela o considerou ser. A única coisa da qual consegue se recordar é do barulho de estrondosos e ensurdecedores tiros. Catharina tinha a certeza de naquela hora estar segurando uma arma, mas não se lembrava como fizera para apertar o gatilho e os tiros, então, serem disparados. Catharina sabia também que era perfeitamente capaz de matar. Sua memória falhava e se tornava penoso demais tentar encaixar os fatos.
            Seu julgamento se procederia dentro de duas semanas e, se considerada culpada, seria submetida a uma pena mínima de cinco anos de prisão, porém esse fator não a preocupava tanto. Num estado de profunda depressão, ela não tinha mais motivação para recomeçar uma “nova vida”.  Seu rosto, envelhecido como se estivesse adiantado no tempo e seus olhos fundos e arroxeados ao redor registravam horas de incessante pranto. Sua beleza que havia encantado os palcos e as telas do Brasil, seu sorriso alegre e seu corpo esteticamente correto, capaz de deixar qualquer homem nocauteado, davam a impressão de terem desaparecido para sempre, entrando numa fase de desgaste físico irreversível. O dinheiro e a fama talvez fossem as premissas e a grande causa de sua infelicidade. Era uma pena que no Brasil ainda não existisse a pena de morte, pensou ela. Talvez fosse melhor assim.
            O país havia parado devido a esse crime, um crime inexplicável diante do povo. A imprensa estaria reunida e espremida naquela plateia, com seus gravadores e máquinas fotográficas prontos para o julgamento registrando tudo e não deixando que nada se perdesse.  Seria a sua primeira aparição perante o público e os jornalistas. Já havia se passado quatro meses desde a sua declaração em rede nacional de televisão que estava abandonando a carreira artística para se dedicar somente à família. Mesmo assim, os brasileiros compreenderam tal atitude e continuaram a amá-la do mesmo modo. Com esse crime, ela voltou a ser notícia, só que agora ela não interpretava nenhum de seus personagens, enfrentava apenas a vida real.
 Catharina tinha apenas esperanças em relação à presença de algumas pessoas. Talvez assim não se sentiria tão sozinha. Ansiava pela presença mais que necessária de quatro homens, quatro amigos que viraram verdadeiros estranhos: Oscar Venturini - o homem que atiçou a sua ambição; Faustino Denegri - o homem que fertilizou a sua ambição; João Francisco, seu pai – o homem que a impulsionou para a maturidade, tornando-a uma mulher de verdade e Robert Júnior, o único homem que amou em toda a vida. A presença de Oscar era importante para ajudá-la a sustentar as forças e concretizar um pedido de desculpas em dívida há muito tempo. Mas Faustino era o único que podia fazer algo. Sua forte influência com políticos e a mídia o tornava uma pessoa com plenos poderes para tal – era o homem que havia lhe proporcionado seus mais ricos desejos. Seu pai só seria de grande valia se pudesse defendê-la no tribunal, o que não ocorreria, pois indicara um outro advogado para lutar por sua absolvição. Robert era o único que tinha alguma chance de aparecer, mas o havia rejeitado por tantas vezes que deveria ter entendido o recado para não continuar a persegui-la. Portanto, o mais provável, infelizmente, era a ausência de todos eles e Catharina, melhor do que ninguém, compreendia as razões dessa ausência. Fora amante, filha ingrata e mulher insensível e os usou como alavanca para conseguir o que queria e os descartou com extrema facilidade, deixando rancores e desdém nos seus corações. Sentia vergonha dela mesma. Além do mais, um deles estava morto e era por isso que estava ali.
Naquela tarde, Catharina não conseguia nem ao menos rezar. A fé havia sido extinta de seu corpo e de sua mente e Deus ainda permanecia como um mistério. Cerrou os olhos sentindo um suave tremor de seu corpo e, pela primeira vez, sentiu seus batimentos cardíacos acelerarem por causa do medo. O mundo que um dia a fez sentir excitamento pela vida, a fazia sentir pena de si mesma.
Mal havia fechado os olhos e pôde ouvir alguns passos no corredor daquele presídio. De          repente o barulho sumiu e teve certeza de que alguém estava em frente a sua cela, parado e a observando, com a respiração ofegante. Essa certeza a fez abrir os olhos, mas sua visão estava um pouco deturpada, tendo dificuldades para enxergar qualquer coisa diante de si. A princípio, viu dois homens. Não precisou de muito esforço para reconhecer um deles. Seu uniforme de policial denunciava ser apenas um dos guardas a vigiá-la permanentemente como se fosse uma assassina perigosa, pronta para fugir assim que tivesse uma chance. O outro não conseguia reconhecer de jeito nenhum. Ainda deitada, o rosto do desconhecido era coberto por uma sombra que só dificultava a tarefa de ser reconhecido. Era inútil. Por mais que forçasse sua visão, o que fazia com que sua cabeça latejasse ainda mais de dor, não chegava a nenhuma conclusão.
Foi então que Catharina pôde ouvir a voz do guarda que lhe pedia, de maneira educada, para levantar-se, pois tinha uma visita importante. Ela então ergueu seu corpo com certa dificuldade até ficar de pé e, saindo do fundo da cela, se aproximou das grades que a separavam da liberdade do mundo lá fora. Encostou sua cabeça nas barras de ferro para olhar de perto aquele homem parado a sua frente e que permanecia em silêncio. Catharina não o conhecia. Não agora.
Um instante depois, a cela se abriu e o estranho entrou, pedindo licença para se sentar numa cadeira alojada lá dentro. Acomodou-se, tirou de dentro de uma pasta uns papéis e pediu que Catharina o escutasse, pois queria contar-lhe algo que seria útil quando começasse a batalha no tribunal.
***

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Terapia das almas suicidas


Numa determinada região do país, um Pastor, a crer no fim do mundo, convence um número expressivo de pessoas a cometerem suicídio coletivo após a pregação formal, exortação de palavras de melhores dias e abandono definitivo desta vida. Diz que o mundo está perto do fim. Nada mais sobrará. Todos se matam com uma bebida de origem desconhecida, mas de gosto amargo, cortante, que queima por dentro quando se espalha pelo estômago.
            Ao chegarem do outro lado, as almas têm de esperar numa antessala de cor acinzentada, fria, com ventos brandos, incessantes. Estão sentadas a curta distância umas das outras. Cabisbaixas, não possuem nenhuma paisagem onde fixar o olhar. Nenhuma definição existe para os minutos seguintes. Isso se qualquer medição do tempo houver. Tudo parece parado em alguma espécie de torpor. Sem som, sem movimento, sem respiração, sem cor, pouca luz.
      Cada alma terá de passar por um interrogatório. Devido ao suicídio, não poderão adentrar imediatamente o paraíso supremo onde elas desejam a todo custo descansar. Uma figura de palidez mórbida entra e avisa com voz baixa que elas terão de conceder esclarecimentos ao anjo analista. Uma explicação será dada. Deverão prestar um depoimento devendo ser o mais sincero possível, ainda que nenhuma garantia haja de conseguirem absolvição.
          Os depoimentos selecionados para este livro pertencem às almas isentas de discurso religioso. O fanatismo proclamado pela maioria maciça dos demais suicidas foi ocultado para não tornar este romance uma narrativa de falas repetitivas e tediosas. 

A insônia é um alimento recheado de passados (livro TERAPIA DAS ALMAS SUICIDAS)


“Quando poderei dormir?”, perguntou a voz cansada. Bocejou num esforço. A ideia persistente de tentar convencer-se de que morrer seria para sempre um sono profundo, sem sonhos, sem pesadelos, sem desordens. Apenas um apagar sereno.
            “Tem sono?” O anjo analista levou a mão à boca. Quase a imitar o gesto incontrolável do bocejo, resistiu bravamente.
            “Ainda não.” A voz embargada saiu em tom de pura decepção.
            “Por que quer tanto dormir?”
            “Em minhas fantasias, a morte seria a única maneira de vencer a insônia que tem me devastado o ser.”
            “Há quanto tempo não dorme?”
            O homem levantou os ombros. Ao anjo analista deu a impressão de ter visto aumentarem no rosto do suicida marcas de um profundo cansaço. Abaixo dos olhos havia a presença de grandes bolsas arroxeadas e, ao redor, rugas que mais pareciam cortes que cicatrizaram, deixando irreparáveis defeitos.
            “Impossível calcular o tempo que não durmo. Quer dizer, não completamente. Nos últimos anos tenho tido leves e atormentados cochilos.”
            “Pode dizer o motivo? Tem condições de relatar a origem da fuga do sono?”
            “Não.”
            (Fechou os olhos. Deixou a cabeça pender para trás o máximo que pôde. Minutos depois, abriu os olhos novamente. Mas a voz que ecoou na minúscula sala era a de um homem entregue ao desespero.)
            “A essa hora já não deveria estar dormindo? Que merda de falatório é esse? Não me diga que não morri! Estou em coma num hospital? É isso? Você faz parte de um sonho, de uma alucinação? Será que ao invés de morrer, sucumbi à insanidade? Também, depois de tanto tempo sem dormir... Eu sabia que não aguentaria mais essa porra de ficar acordado. Nos últimos dias estava se tornando insuportável.”
            “Não é nada disso. Você está morto. Eu garanto.”
            “E por que ainda continuo evocando um sono que não vem?”
            “Precisa antes depor a respeito de sua vida.”
            “Depois dormirei?”
            “Tudo a seu tempo.”
            “Eu só preciso dormir. Só isso.”
            (O homem chorou. Misturou lágrimas à saliva que escorria de sua boca. O anjo analista não interferiu no processo de exteriorização da dor.) 
            “A morte é isso?”
            “Defina.”
            “A morte é relembrar as minúcias de toda uma vida?”
            “O que gostaria que fosse?”
            “Uma noite de sono.”
            “Lamento decepcioná-lo. A morte sempre foge do imaginário restrito dos homens.”
            (Num espaço curto para devaneio inapropriado – ele era o analista, portanto era justa a permissão para ausentar-se – o anjo pensou nos romancistas. Esses sim tinham imaginações quase perfeitas a respeito da finitude. Mesmo assim nenhum deles acertou quanto ao que de fato era reservado após o morrer. Voltou sua atenção para a pergunta que lhe era dirigida.)
            “É só isso que pode dizer?”
            “Antes que eu vá adiante, preciso que você fale.”
            “Falar o que?”
            “Fale mais sobre sua insônia.”
            “Se quer sabe quando começou ou o que levou ao surgimento, eu sinto muito. Não posso mais definir com tanta clareza o início da instalação desse inferno.”
            (Uma nova pausa permeada de silêncios)
            “Apagar a luz e deitar sobre a cama era o instante de maior ansiedade. Eu sabia que não iria dormir. Mesmo assim ainda sobravam resquícios de esperança. Algo talvez me fizesse relaxar sob o efeito anestesiante do sono. Mas nada acontecia. A insônia é um alimento recheado de passados. Eu assim a defino depois de encará-la por muitas noites seguidas. Fechava meus olhos. Fixava-me na simples ideia de dormir, mas sem que pudesse dominar ou exercer qualquer resistência, eu me via atolado numa rede de pensamentos. Muitos pensamentos. O passado me atormentava. Começava com coisas de poucos momentos atrás: um e-mail lido, uma imagem na internet, algo que chamou a atenção no noticiário. Coisas recentes. Depois era a solidão em que me encontrava, meu último aniversário, a festa de confraternização natalina do trabalho, lembranças com meus pais quando ainda morava com eles na juventude, minha infância afogada em pequenas alegrias. Enfim, regressava totalmente. Às vezes ficava horas tentando recordar os momentos íntimos que tive com minha mãe quando, por nove meses, me mantive mergulhado na barriga dela. Loucura isso. Junto com o passado, os mortos também vinham me visitar. Amigos, parentes que morreram das mais diferentes formas: câncer, atropelamento, infarto. E como uma coisa puxa a outra, eu me perdia em questionamentos do tipo: por que continuo vivo? Onde estão essas pessoas que morreram? Será que tenho uma missão a cumprir? Qual a sorte que determina nosso tempo de vida?
            Eu percorria todas as posições possíveis na cama. Rolava de um lado a outro. Virava de barriga pra cima. Abria os olhos. Encarava o teto. Fechava os olhos novamente. Colocava-me de lado. Dobrava as duas pernas junto ao peito. Cerrava os olhos com força. Por segundos eu acreditava estar dormindo. Um leve cochilo. Raso. Porém essa breve pausa era carregada por pesadelos estranhos, sem muito sentido. Assustado eu acordava de novo. Abria os olhos com espanto. Olhava no relógio à cabeceira da cama: cinco minutos haviam se passado. Apenas cinco minutos. Ainda de lado, esticava uma das pernas e mantinha a outra dobrada. Depois invertia. Esticava uma e dobrava a outra. Fechava os olhos que ardiam. Essa ardência eu achava que era o início do sono. Então me animava. Virava para o outro lado, me cobria com o grosso edredom até a altura do pescoço. Eu tinha uma boa cama, um colchão ortopédico que não me feria a coluna, um ar-condicionado que sempre me lembrava a infância na região serrana, lençóis que ainda traziam o cheiro do amaciante perfumado: tudo era um convite a uma boa noite de sono e de sonhos. Mas de nada adiantava. Só o que eu tinha era uma noite de insônia e pesadelos, pois o pouco que conseguia era um sono raso, superficial, onde abundavam a sensação de morte iminente e os fantasmas sem rosto.
            Horas depois, mesmo com o ar-condicionado trabalhando em sua potência máxima, eu sentia calor. Jogava o edredom para o lado. Voltava a encarar o teto escuro. Respirava profundamente, irritado com meu estado deplorável. Levantava, ia até a geladeira, bebia um copo de água, abria a janela. Algumas vezes chorei a contemplar a madrugada silenciosa, vista do meu apartamento, no oitavo andar de um prédio localizado no centro da cidade. Parecia que àquela hora toda a cidade dormia, menos eu. Para onde havia fugido a minha capacidade de dormir? Por que estava sendo castigado? Isso se repetia todas as noites. Próximo do horário do despertador apitar, eu já estava de olhos abertos com o estômago a queimar como se pegasse fogo, minha cabeça latejando e dores nas pernas, dando a impressão de que andei durante as seis horas anteriores.”
            “Chegou a procurar ajuda médica?”
            “Fui a especialistas, terapeutas. Seguia os conselhos à risca. Mandaram que eu diminuísse o café. Poderia beber, mas depois das seis da tarde ficaria expressamente proibido o consumo da bebida que, segundo os especialistas, deixava as pessoas mais alertas. Durante o dia, para me manter acordado, me enveredava por uma overdose de café. Pouco efeito surgia. Eu era como um zumbi. Quase não ouvia as conversas ao redor. Me sentia inserido num mundo de sonhos, de pouca nitidez, lento, opaco. Sendo assim, depois das seis, só me alimentava de água e frutas. Porque um outro conselho foi comer pouco à noite. Um dos médicos – dos vários que consultei – me receitou que, antes de dormir, tomasse um banho morno por pelo menos quinze minutos; que em seguida bebesse um chá de erva cidreira, no mínimo uma xícara. Na primeira vez que segui seus conselhos, cheguei em casa em pura empolgação. Eu tinha certeza que naquela noite, se cumprisse todas as recomendações, eu ganharia um prêmio por minha disciplina. Tomei banho, fiz o chá, não liguei o computador, fui cedo para a cama, mas só o que recebi foi uma noite completa de pura insônia. Nem os cochilos me visitaram. Um desastre total.
            Depois uma amiga me recomendou que praticasse um esporte, pois, se cansasse meu corpo, ele fatalmente apagaria quando fosse para a cama. Como nunca fui dado a esportes, resolvi me inscrever num clube próximo a minha casa, o qual possuía uma piscina térmica de vinte e cinco metros de extensão, onde poderia praticar natação, um esporte pelo qual sempre tive certa admiração. Por duas semanas nadei todas as noites após o trabalho. Não dormi por conta disso. Ao contrário, só ganhei um cansaço extra. Pela manhã, meu corpo não queria levantar, minhas pernas pesavam como se tivessem bolas de ferro amarradas nos calcanhares. Eu me arrastava até o banheiro. Minha imagem no espelho estava ficando cada dia mais deplorável. Eu me transformava num bicho acuado numa jaula. Eu tinha fome e sede de sono. Isso estava me sendo negado. Ao redor dos meus olhos, uma bolsa arroxeada ganhava mais cor. Meus olhos vermelhos ardiam. Só o que eles queriam era se manter fechados. O sono que me era tirado à noite me perseguia por todo o dia. Percebi que nas últimas semanas os dias estavam se tornando longos demais, assim como as noites.”
            (silêncio)
            “Por isso se matou?”
            “Eu só quero dormir. Cheguei a fazer uso de medicamentos também. Eles fizeram com que eu dormisse por algumas noites. Mas a sensação era de chegar até a borda do sono. O que eu queria de fato era mergulhar profundamente, sentir-me revigorado pela manhã. Mas isso não aconteceu. Nunca mais. Então abandonei os medicamentos e os substituí pelo álcool. Mais especificamente o vinho. Comecei com duas taças por noite. Descobri que o vinho era eficaz. Ficava mais relaxado, mais leve, mais tonto. Com a cabeça a girar, eu desabava na cama. Nos primeiros dias representou um alívio. Aumentei a dose no mês seguinte. Mas depois de um tempo, uma garrafa de vinho por noite só me perturbou ainda mais. Ao invés de dormir, eu passei a sofrer uma espécie de alucinação. Via vultos. Um medo assustador se apossou de mim, o que me impedia de fechar a porta do quarto. Pela manhã, a dor de cabeça aumentou, meu fígado reclamava com força. Meu estômago queimava intensamente e eu me sentia muito mais cansado. Só me restou o desejo de morrer.”
O homem hesita. E por fim completa.
“Para dormir.”
            Com olhares submissos – que se preparavam para efetuar um pedido – o suicida encarou o anjo analista.
            “Poderei dormir agora?”

sábado, 7 de setembro de 2013

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS

Livro 37 deste ano: "Todos os cachorros são azuis", de Rodrigo de Souza Leão.
Embarcar na escrita de Rodrigo é perceber que, para além de simplesmente tecer uma história, a literatura pode representar um poço de salvação. Não me sinto tão só no mundo quando me deparo com livros e autores dessa tribo.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Influências da vida de escritores sobre a percepção que temos de suas obras


É possível sentir-se atraído primeiro pela personalidade de um autor para só depois interessar-se por seus livros? A pergunta me faz refletir no quanto a história de vida de um determinado escritor acaba influenciando a maneira como dirigimos nosso olhar para suas obras, pautando assim nossa crítica e interferindo diretamente num processo de identificação. Isso aconteceu comigo duas vezes: com Virgínia Woolf e com Valter Hugo Mãe.

           Em 2002, sem ter lido sequer um livro de Virgínia Woolf e sem saber nada ou quase nada dessa grande escritora inglesa, eu entrei numa extinta sala de cinema de Icaraí para assistir ao aclamado e premiado filme As Horas. A ansiedade para conferir a película se devia muito mais ao diretor Stephen Daldry (que no ano anterior havia dirigido Billy Elliot, uma agradável surpresa) do que à história em si que, lido rapidamente nos jornais, verifiquei que girava em torno da vida de três mulheres em épocas e estilos distintos. Fora as atuações sempre marcantes de Meryl Streep e Julianne Moore e uma Nicole Kidman que buscava um lugar ao sol após ter se divorciado do galã Tom Cruise eu não tinha outros atrativos para encarar quase duas horas de puro drama. Vale destacar que Nicole Kidman recebeu a estatueta do Oscar por interpretar Virginia Woolf e dois anos depois arrancaria aplausos no Festival de Cannes pelo filme Dogville, numa parceria bem sucedia com Lars Von Trier. Resumindo, As Horas é um filme espetacular que recebeu nove indicações ao Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor atriz (Nicole Kidman), melhor ator coadjuvante (Ed Harris), melhor atriz coadjuvante (Julianne Moore), melhor roteiro adaptado, melhor edição, melhor figurino e melhor trilha sonora.

            O fato é que quando o filme chegou ao fim e a música de Philip Glass entoou mais forte junto com a ficha técnica, eu estava tomado por uma pressão nos ossos e no peito que me levaram a algumas lágrimas exaustivas. Em um efeito de hipnose eu ainda não conseguia identificar a que se deviam as lágrimas e o torpor. Taciturno, custei a me levantar. Um dos últimos a deixar a sala eu saí com passos trôpegos sem nenhuma vontade de voltar para casa. Eu precisava caminhar. E assim eu fiz. Por horas, sentindo-me invisível, eu caminhei pela orla da praia de Icaraí. Por fim, concluí que não era só o filme que me deixara exultante, mas sim a história de vida de Virgínia Woolf. Foi também um efeito de identificação imediata com a escritora. Não me refiro aqui a seus escritos nem muito menos a ideia de me comparar a ela, mas tão somente à personalidade melancólica de Virgínia. Na época eu tinha somente vontade de escrever, mas sentia como se me faltassem armas, competência e disciplina para sentar-me e simplesmente escrever. Eu queria escrever, mas não fazia ideia do que era dedicar-me à literatura. Dedicação à escrita e a literatura como peça fundamental de sobrevivência foi o que vi em Virgínia Woolf. Em seus aspectos técnicos – roteiro, direção, elenco, trilha sonora, montagem e edição – o filme é um primor. Mas não fosse a vida conturbada de Virgínia até o suicídio, seus momentos de devaneios para criar e escrever, o filme corria o risco de cair na vala comum destinada aos dramalhões hollywoodianos.


De repente eu queria desesperadamente conhecer e saber tudo sobre Virgínia Woolf. Comprei o livro homônimo (aparentemente infilmável) que serviu de base para a construção do roteiro. Da autoria de Michael Cunningham, foi vencedor do prêmio Pulitzer. Nos meses seguintes pesquisei bastante sobre a vida da escritora. Virgínia Woolf perdeu a mãe aos treze anos e passou a enfrentar severas crises depressivas após isso, acompanhadas de alucinações auditivas. Dizia ouvir vozes, além de incapacitantes dores de cabeça. Suicidou-se em 1941, mergulhando para a morte no Rio Ouse.

            Demorou muitos anos para que eu lesse Virgínia. E vivo me perguntando o porquê. Por que essa lentidão já que a paixão por Virgínia foi imediata. Hoje não posso afirmar com convicção, mas ouso repousar minhas reflexões sobre duas hipóteses que são coerentes. Em 2002, quando assisti ao filme, eu era muito imaturo, possuidor do desejo de ser um escritor, mas com pouco conhecimento em literatura. Até então eu gostava de ler Sidney Sheldon, Danielle Steel e Stephen King. Nada contra mas era preciso alçar voo. Ir além. Também fosse possível que eu tivesse medo de ler Virgínia por já prever de antemão que teria sérios problemas para interagir com uma escritora proclamada pelos intelectuais e pelos mais renomados críticos de literatura por ser pioneira no chamado “fluxo de consciência” e justamente por ser complexa e de difícil leitura.

           Virgínia Woolf ganhou espaço entre meus livros quando surgiu em mim uma necessidade de mudança de rumo nas leituras. Chegou junto com outros grandes autores: José Saramago, Dostoiévski, Roberto Bolaño, Philip Roth, Clarice Lispector. Li somente dois livros de Virgínia: Mrs. Daloway e O quarto de Jacob. Que ninguém se engane. É uma leitura difícil, confesso, mas que reflete exatamente quem foi essa grande mulher: uma escritora complexa, uma escrita (um tanto delirante, se me permitem dizer) que não se prende propriamente a uma trama. Terei de ler outros livros de sua autoria, não sem antes reler esse dois títulos que citei. 
   
               E é justamente nessa época que entra Valter Hugo Mãe, a quem me referi no início do texto. Aconteceu em 2011. Eu estava em êxtase naquele ano. Pela primeira vez eu havia me organizado para ir a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), algo que vinha protelando nas edições anteriores por conta dos velhos problemas de sempre: falta de dinheiro e de tempo. Consegui juntar uma grana e programei as férias para o período da festa. Eu, finalmente, conheceria Paraty e mergulharia na FLIP. Comprei ingressos para praticamente todas as mesas literárias. Valter Hugo Mãe chamou minha atenção pela ausência de letras maiúsculas em seus textos, inclusive assinava até então só utilizando minúsculas. Bastou assistir sua apresentação para que eu fosse fisgado pelo cara. Com um discurso simples, carismático, empolgante, Valter encantou a plateia. Foi aplaudido após ler uma carta que escreveu em homenagem ao Brasil.

Trecho final da carta: “... sonhei sempre em vir ao Brasil, e vim várias vezes. Faltava vir como escritor. Publicado e recebido. Pois aqui estou. A FLIP fez isso. Não esquecerei nunca. Sinto que fazem de mim um homem de ouro. Agradeço a todos muito por isso.”
Vale a pena assistir na íntegra no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=euD46SXKaOc.


Conclusão: seus livros esgotaram. Autografou por mais de duas horas. Eu fiquei um bom tempo na fila, mas valeu a pena. Valter conversou brevemente comigo, deixou que eu tirasse fotos ao seu lado e, simplesmente, me encantou. Lembro que sai à caça de todos os seus livros e li um atrás do outro: o remorso de baltazar serapião, o nosso reino, a máquina de fazer espanhóis, o apocalipse dos trabalhadores, O Filho de Mil Homens. A repetição do fato me levou de volta à Virgínia Woolf. Novamente eu me deixava envolver pela personalidade de um autor para só depois ir ao encontro de seus livros.

            A inspiração para escrever esse artigo veio depois que assisti ao filme Flores Raras, de Bruno Barreto. Nunca li nada de Elizabeth Bishop, mas confesso ter ficado bastante interessado em conhecer mais da vida da poeta norte-americana.

            E com vocês? Já ocorreu algo parecido? O que acham? É possível sentir-se atraído primeiro pela personalidade de um autor para só depois interessar-se por seus livros? E quais as influências do histórico de vida de um escritor sobre a percepção que temos de suas obras?

domingo, 25 de agosto de 2013

A morte impulsionando a literatura


Recentemente li no site do jornal Correio Braziliense que um grupo de poetas e escritores promovem encontros para falar sobre a morte. A ideia é de Renato Fino, autor de “Debaixo do céu do seu vestido”, que batizou o evento como Noites Mortas. Uma vez por mês, o grupo se reúne com o objetivo de falar da morte, fazer leitura de poemas, contos e crônicas ligados ao tema e apresentar performances e intervenções.

Quem nunca sentiu angústia ao pensar na morte e no que ela pode representar? Quem também nunca pensou em morrer para acabar com a dor? Ainda que não saibamos nada sobre a morte e quais os benefícios (?) que ela possa trazer, ainda reina em nosso imaginário uma espécie de sono apaziguador que possa dar cabo de todo sofrimento, apesar de que, para nosso inconsciente, somos todos imortais.

Há um velho clichê que diz que a morte é a única certeza da vida. Mas essa definição é uma verdade existencial inescapável. Portanto, fundamental. A consciência do fim é algo que se impõe a cada um como destino individual e inevitável. Talvez por ser o grande mistério de toda uma vida, a morte tem sido um tema recorrente na história da literatura. Muitos autores, internacionais e nacionais, têm utilizado a finitude humana para compor o drama principal de seus personagens.

Na literatura nacional destaco dois jovens e promissores autores que vêm marcando espaço na literatura contemporânea: André de Leones e Carlos de Brito e Mello que, em 2011, estiveram presente na nona edição da Festa Literária Internacional de Paraty, numa mesa intitulada Escritas da Finitude.

André de Leones, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2005 com o romance “Hoje está um dia morto”, destaca a influência da morte em suas obras. Sua escrita constrói mundos em estágio terminal e parece contaminar-se pelos dilemas existenciais que apresenta. Em seu livro mais recente, “Terra de casas vazias”, um ponto em comum em todas as histórias que se entrelaçam, é o enfrentamento das perdas, os processos de luto que a estas acompanham e a consciência de que enquanto vivermos essas perdas serão constantes.

“A passagem tensa dos corpos” (livro finalista dos prêmios São Paulo, Jabuti e Portugal Telecom em 2010), de Carlos de Brito e Mello é, na minha opinião, um dos romances mais geniais de todos os tempos. Absurdamente original o narrador desta história, que não tem sua origem e constituição claramente definida, tem de ir percorrendo cidades de Minas Gerais, colecionando registros de falecimentos, com o objetivo de readquirir forma humana, utilizando como meio para discrição das mortes que encontra pelo caminho a própria linguagem:

“Toda palavra proferida ao redor da morte comporta, pelo menos, um fonema enlutado, e as perturbações de fala são formas pelas quais morrer obseda a língua.”

Carlos de Brito e Mello destaca que “apesar de tudo, narrar é a única opção que nos resta, antes de sermos tomados por ela.”

A morte, como desespero universal, continuará inspirando a literatura por ser, a priori, um tema complexo, misterioso, que não pode ficar restrito ao campo das religiões e da fé e que, irremediavelmente, afeta a todos.

De forma magistral, assim discorre sobre a morte o psicanalista e filósofo Ernest Becker em seu livro “A negação da morte” (vencedor do prêmio Pulitzer de 1974): “Como deve ser doce abrir mão do colossal fardo de uma vida de autodomínio, autoformação, relaxar a crispação com que a pessoa se agarra ao seu próprio centro e ceder passivamente a um poder e a uma autoridade superiores, e que alegria nessa rendição: o conforto, a confiança, o alívio no peito e nos ombros da pessoa, a leveza do coração, a sensação de estar sustentado por algo maior, menos falível. Com os seus problemas característicos, o homem é o único animal que pode, muitas vezes de bom grado, abraçar o profundo sono da morte, mesmo sabendo que isso significa o esquecimento.”



domingo, 30 de junho de 2013

duas grandes surpresas


a vida é apenas um acidente de percurso.
de repente, nascemos. sem darmos conta de como isso acontece.
e surpresos, morremos.
sim, porque nascimento e morte são as duas grandes e definitivas surpresas da vida.

sábado, 22 de junho de 2013

O amor é imperfeito


Fique triste quando não puder evitar.
Diga que ama a quem de fato ama.
Faça amigos a perder de vista,
mas não se prenda a pessoas
que nada acrescentam.
Fique só para aproveitar a própria companhia.
Faça o que tiver vontade.
Arrependa-se o menos possível.
Porque uma vida sem arrependimentos
é praticamente impossível!
Fale o que pensa, mas opte pelo silêncio
quando o diálogo não for interessante.
Nem todos estão preparados para te ouvir.
Cante ainda que desafinado.
Sorria em frente ao espelho.
Seu rosto será sempre seu reflexo imediato.

Chore quando sentir saudades.
Existem pessoas que partiram cedo demais.
Ignore a auto-censura em demasia.
Procure ser mais leve.
Mesmo quando tiver a impressão de que todas
as dores do mundo estão sobre seus ombros.
Pule de alegria quando ouvir no rádio
uma música que lhe lembre dias do passado.

O amor é imperfeito.
A vida é imprevisível.
Mas a escolha é sempre nossa.

domingo, 9 de junho de 2013


Se julga ainda não ter encontrado um amor,
viva como se estivesse a se preparar continuamente
para quando esse momento chegar.
O amor reside muito mais na esperança
do que na realidade em si.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Noite de autógrafos do meu novo romance


Convido a todos para a noite de autógrafos do meu terceiro romance :
"AMOR EM TEMPOS DE SOLIDÃO"

Vinho; exibição de trechos do filme "As Horas"; 
Um bate-papo descontraído sobre o processo de construção do livro (e suas consequências);
E mais vinho, até que sequem todas as garrafas.

Eis os protagonistas deste livro: um estupro, uma criança com paralisia cerebral (e que, misteriosamente, deixa de crescer aos dois anos de idade), uma profunda depressão e o amor (o abstrato e simbólico amor) como única fonte de cura, perdão e redenção.

"O amor é imperfeito.
A vida é imprevisível.
A escolha é nossa..."

Dia 7 de junho as 19h, no Espaço GLIA.
Rua Dr. Nilo Peçanha, 142 - Ingá - Niterói.


sábado, 18 de maio de 2013

Um último dia na vida de um escritor


Ao abrir meus olhos pela manhã, ainda tinha em mente os mesmos planos da noite anterior: hoje eu iria morrer. Ato contínuo, sentei-me na cama, pousei os pés no assoalho frio de madeira, cerrei os olhos com força. Um estranho cansaço repousado em meus ombros fazia-me não desejar dar um passo sequer. Mas eram sete horas da manhã e meu trabalho, contrário a todos os meus intentos, me aguardava. Seria preciso entrar no escritório de contabilidade onde trabalho por mais de vinte anos.
Estar deprimido torna o mundo e as pessoas completos desconhecidos.
Ao menos retira de nós tudo aquilo que achávamos conhecer sobre a vida.
            Mediante o desânimo, realizei os mesmos gestos de todos os dias, de maneira robótica, sem dar-me conta da importância de cada ato. Para mim, em nada acrescentava o fato de levantar-me, ir de encontro a um serviço maçante, mecânico, mas impossível de deixar porque precisava do dinheiro para sustentar-me.
            Aos nove anos decidi que seria um escritor; aos vinte e cinco concluí meu primeiro romance; aos trinta descobri, com tristeza, que ninguém queria publicar meus escritos. Mesmo assim persisti em escrever, sabendo ser preciso continuar a contar histórias, mesmo que fossem lidas por poucas pessoas. Apenas alguns amigos mais chegados, interessados em se aproximar, por curiosidade, a um cara calado, reservado, de aparência triste, melancólico, que se dizia ser um escritor.
            Sei que sou um escritor, porque em minhas fantasias nenhuma outra coisa conseguiria ser. Dói somente o fato de não poder ser em tempo integral aquilo que idealizo para uma vida inteira. Quase a chegar na metade da caminhada, uma espécie de realidade recheada de loucura foi o que sobrou para definir meus dias arrastados, tediosos, cheios de mágoas. Já não aguento mais.

Numa pequena cidade do interior nasce o escritor. A lua está cheia. Uma enchente varre tudo o que vê pela frente. Um terremoto do outro lado do planeta deixa milhares de vítimas. Um pregador no norte, a crer no fim do mundo, faz com que uma multidão cometa suicídio coletivo e também se mata ao final. O mundo não acaba.
Uma criança prematura. Pouco peso, indefesa. Internada por dias numa maternidade cheia de ratos. Os ratos e as bostas dos ratos o seguiriam por todos os cantos. Não só os ratos, mas todos os sinais deixados por aquela noite.
Muitos disseram que não ia vingar. Muitos atribuíam aos sinais o fato da criança ter crescido esquisita, estranha. Muitos tinham medo. Uma feiticeira dirá ao jovem escritor, anos mais tarde, que todas os que morreram na noite do seu nascimento encontram-se ao redor dele, a sussurrarem intermináveis histórias, a se arrependerem continuamente. Dirá ainda que são esses espíritos que o estimulam a escrever, a contar interessantes histórias. A materialização no papel é a única forma de ganharem vida novamente. O escritor não acreditará. Em pouca coisa acredita. Mas essa hipótese o atormentará um pouco mais.
            Verdade ou mentira, ele tem fantasmas na cabeça.

Tenho fantasmas na cabeça. E bosta de rato no chão do meu banheiro. Sei que eles estão aqui a me observar.
Iniciei meu ritual diário como se estivesse a escrever o prólogo de uma tragédia. Barbeei-me, tomei banho, enxuguei-me, borrifei um pouco de perfume por trás das orelhas. Voltei ao quarto, abri o guarda-roupa, retirei um dos muitos ternos, vesti a calça, as meias, a camisa, calcei os sapatos. De volta a encarar o espelho, apertei o laço da gravata em volta do pescoço, vesti o paletó. Pronto!
Ao fechar a porta atrás de mim, iniciei a caminhada com o coração carregado da mesma sensação. A ilusão de que os sonhos morriam com o acordar, sendo o sono um santo remédio para as dores da alma, uma dormência temporária para o turbilhão de pensamentos a chacoalhar em minha mente. A sensação de que o trabalho é uma espécie de veneno que me entorpece com uma promessa de morte que nunca se cumpre.

A mãe do escritor tem mania de comer papel higiênico. Começou durante os primeiros meses da gravidez. Era apenas um desejo a ser satisfeito. Compulsivamente passou a picar pedaços de papel e colocá-los na boca. No supermercado, sempre comprava os de folha dupla, sem perfume, que pareciam derreter na boca, tamanha maciez. Em frente à televisão, comia como quem come algodão doce. Numa noite facilmente se ia quase a metade de um rolo.
O cu do mundo foi a terra onde o escritor foi gerado. Tentaria retornar para esse mundo por muitos anos.
A imperfeição era sua casa.

Há muito tempo tenho por hábito tomar o café-da-manhã numa padaria localizada a três quarteirões de minha casa. Por duas questões essa decisão é especial: primeiro porque trabalho algum há nisso e segundo porque, na calçada em frente, uma jovem mulher de não mais de vinte e cinco anos chega cedo para dar início a sua venda de flores. Tenho nessa paisagem a energia necessária para enfrentar as horas pelas quais se estenderá o longo dia. Todos me conhecem por aqui. Ouço cumprimentos quando chego, mas nada mais recebo que sorrisos fracos, quase mortos, sem mostrar os dentes. Vou direto à mesa de sempre, localizada no interior, próxima à vidraça de onde avisto o outro lado da rua sem incômodo algum. Ainda não vejo a jovem florista. Ainda é cedo.
            É o tempo suficiente para o jovem rapaz que me serve todas as manhãs trazer-me o cardápio de sempre: uma xícara de café fumegante acompanhada de duas fatias de pão com uma fina camada de manteiga e um pedaço de bolo. Agradeço, procurando ser gentil. Gentil a minha maneira. Olho para o rapaz com generosidade, invejo a simplicidade de viver que não possuo e que sempre visualizo nos olhos das outras pessoas (que me dão a impressão de serem felizes com o pouco que a vida os dá). Uma pena, pensei, mas não há meios de viver outra vida.

Num igarapé de pouca profundidade, a correr no interior da mata, na região central do Pará, uma garota de doze anos tem seus cabelos arrancados. O escalpelamento acontece dentro de uma embarcação sem segurança nenhuma, que tem o motor e seu eixo descobertos. Quando o motor é ligado, o eixo gira em alta velocidade. Durante a viagem, como é comum, o barco fica alagado. Passageiros têm que tirar o excesso d'água. A garota abaixa para pegar uma vasilha. Ao se aproximar do eixo, que gira muito rápido, seus cabelos cumpridos e presos, são arrancados violentamente.
Ela desmaia.
A garota perde o couro cabeludo e tem parte da orelha decepada. Cabelo algum jamais cresceu. Passa a usar no alto da cabeça um lenço florido. Longo e que recai sobre um de seus ombros. Um cabelo artificial que tem uma tintura especial, uma cor diferente: cor de jardim com flores.

Quando o escritor completa nove anos, seu pai é lançado num presídio. O pai do escritor é preso pelo acúmulo de pequenos crimes. Porte ilegal de armas. Assaltos em estabelecimentos comerciais. Falsificação de documentos. Tráfico de drogas. Esse último foi o que determinou sua prisão de vez. Um crime que virou motivo de piada. Na fronteira com o Paraguai, o pai do escritor é apreendido com três gomos de cocaína compactada enfiados no rabo.
(como ele achou que aquilo sairia facilmente?)
Para retirar a droga foi necessária uma cirurgia complicada, demoradas horas. Por fim, a droga foi extraída ilesa, de forma que não causou grandes danos a mula que a carregava para outro país. Na prisão, o pai do escritor ficou conhecido como o “cu de ouro”. E, na prisão, todos queriam provar o “cu de ouro”. Vários detentos o arrombaram em meio a gargalhadas, assombros e ameaças.

Quando provo o café quente e dirijo meus olhares para o outro lado da rua vejo a bela moça por quem compreendo sentir um amor inatingível. Meu coração livra-se de toda a apreensão para deleitar-me no poder que aquela beleza tem de me acalmar. A moça, sempre a sorrir, com seus cabelos loiros e longos, presos num rabo de cavalo mal feito, vai tirando do interior da loja os muitos ramos de flores e colocando-os na calçada dando um colorido muito especial à rua. Não sei o nome dela, sobre o que gosta de fazer, seus sonhos, seus objetivos, mas sei apenas que gosto de apreciá-la. E, sinceramente, acho que deva permanecer assim. Minha paixão se move pelos mistérios que a cercam. Se algum dia chegar a trocar palavras, acredito que parte da beleza que me atrai será obscurecida pela realidade crua que torna a vida mais rígida, menos fantasiosa e mais sofrida.
            O que me falta mesmo na vida é um amor.
Mas não será essa a busca de toda uma vida?
O amor é para ser encontrado?
Ou o amor é para ser descoberto, compreendido?

Um concurso público foi o grande cajado de Moisés a abrir uma poderosa fenda no mar. Por essa passagem a garota do lenço florido amarrado na cabeça vai-se embora. Uma outra cidade a recebe. Nunca mais olha para trás. A esquecer do drama e do preconceito, jura viver uma outra vida. Jura encontrar um amor.
E encontra...

Olho no relógio. Estou atrasado. Olho para a moça como quem olha para o infinito. Gostaria de fudê-la (ou fodê-la?). Qual seria o correto? Não sei.
Me ponho a caminho do trabalho. Ao chegar no escritório, busquei aparentar ser uma pessoa normal, mesmo sabendo estar vivendo sob a mais anormal das circunstâncias. Cumprimentei a todos, cumpri minhas tarefas com afinco, prostrei-me diante de diversas planilhas de cálculos, recheadas de números, circundado por fórmulas óbvias, impedido de fantasias, preso como quem é castigado, proibido de escrever as tantas histórias que inundavam meu ser. Conversava com meus colegas de trabalho normalmente, mantendo a calma; ria quando um deles dizia algo engraçado, fingia estar atento às conversas na hora do almoço, mas só sentia-me um pouco melhor quando o expediente chegava ao fim.
            Aquele escritório me lembrava os lenços floridos. Foi ali que a conheci. Lembro-me perfeitamente do dia em que a vi pela primeira vez. Apaixonei-me. Em seu rosto, uma mutilação. Parte de sua orelha decepada ficava visível. Em lugar do cabelo tinha um lenço florido a cobrir o alto de sua cabeça. Nunca tentei imaginar como ficaria se tivesse cabelos. Sempre preferi os lenços com estampa de flores. Nenhuma outra mulher havia me atraído tanto. Tendo entender porque. E compreendo. Era imperfeita. Linda, mas imperfeita. Seu rosto era carregado de tragédias. Bastava encará-la para poder identificar resquícios de uma tragédia. Assim como eu, ela trazia um selo de identificação. Éramos monstros a sobreviverem num mundo certinho demais, que sempre desprezei. Eu a amei. Ela correspondeu ao meu amor.
Uma pena que acabou. Uma pena...
A sensação de não-pertencimento a este mundo provocava em mim diversas dores. Primeiro, por se tratar de uma afirmação incontestável. Segundo por ser o suicídio a única esperança que se apresentava diante de tamanho desconforto.
           
            O presídio onde o pai do escritor está mudará toda a trajetória do garoto em transformação. Uma sórdida inspiração, ele dirá mais tarde. Um contato, como se já esperado há anos, com um mundo em desordem, um mundo imperfeito. Seis meses após a prisão, um juiz autoriza o escritor a visitar seu pai. Decisão essa que talvez tenha vindo por também ser pai e, tentando um mínimo de humanização, coloca-se no lugar do preso. Quanta falta deveria sentir os pais de seus filhos quando lançados naquele lugar imundo. Dependendo do comportamento do pai, o escritor poderia visitá-lo em ocasiões regulares, a acontecer de dois em dois meses.
No primeiro dia, o escritor poucas palavras disse. Falta alguma sentia do pai, mas calou-se frente a suas verdadeiras emoções. O rosto contorcido do pai, algumas lágrimas em contato com a pele enrugada o impactaram de certa forma. A atmosfera à volta o chocaria mais que tudo. Passou a maior parte do tempo a reparar em cada detalhe ao redor. Lixos espalhados, uma vala de esgoto que perpassava o meio do pátio. O cheiro que recendia dali era podre. Homens com uma mesma roupa encardida. Fumando cigarros com olhares perdidos ao longe. Desilusão foi o que viu naqueles olhares. Em alguns o ódio petrificava a face. Tudo era sem vida. Olhos de vidro, embaçados. Lábios rachados, cabelos longos, uma sujeira entranhada em cada pedaço de carne, onde outrora havia uma expressão qualquer.
Num momento de distração, o escritor caminhou por entre os detentos. Quando mãe e pai conversavam mentiras. Pois ela não dizia a ele que comia papel higiênico e ele não confessava estar farto de ser enrabado quase todas as noites. Por alguns segundos chegou a fechar os olhos. Absorveu todo o cheiro de imundície. A miséria era o destino de todos os homens? Ou a miséria era a casa principal dos homens? O certo era que o escritor sentiu-se num retorno ao lar. O cu do mundo. O cu do mundo foi o que constatou estando naquele presídio. Um mundo imperfeito. Essa imperfeição fundamentaria todos os seus escritos. Não sabe se quis ser escritor a partir disso ou apenas ganhou a ferramenta ideal para vir tornar a ser o que era seu destino desde o início, desde quando foi gerado, numa foda sem prazer, permeada por álcool, heroína, música em alto volume, a terra a girar.
Ao despedir-se do pai, lamentou ter de ir embora. Seu pai alegrou-se na inocência de achar que o filho queria tê-lo ao seu lado. O escritor não quebrou o encanto, mas regozijou-se por já tecer sua própria ficção. Reforçou a magia ao dizer que não via a hora de poder voltar. Fechou os olhos, absorveu o cheiro podre. Enquanto saía, tentava a todo custo registrar na memória aquele cheiro ruim.
Sua primeira produção literária se dá aos nove anos, mais especificamente, três semanas após a visita ao presídio. Um curto texto. Dois parágrafos que ultrapassavam pouco mais da metade de uma folha. Uma escrita densa. Uma narrativa irregular. Fez questão de mostrar à mãe, sendo ela a primeira a ler. Tremeu todo ele ao ver sua mãe, em silêncio, segurar o papel e correr os olhos por cada linha. Tremia por ansiedade e também por temer que a qualquer instante, sua mãe pudesse picar todo o material e, pedaço a pedaço, ir colocando na boca a mastigar em pura fome.
Por fim, sua mãe cravou seus grandes olhos nele. Deu tapas na cabeça do jovem escritor e agarrou sua orelha, torcendo com demasiada força. Disse que aquilo era um material pecaminoso, recheado de palavras pornográficas e ficou a perguntar o que o filho tinha na cabeça? O escritor gemeu, implorou. Sem entender tal reação, agonizou com a dor e com o cheiro de merda que vinha direto da boca de sua mãe. O cheiro era ruim, imperfeito. A reação da mãe, ao invés de desanimá-lo, só o impulsionou ainda mais para o alto. Para o pequeno escritor, um texto deveria causar no leitor estranheza, impacto.
No vazio do quarto, releu sua primeira obra-prima. Em voz alta cantou as palavras que tanto desagradaram sua mãe. Deitado de bruços sobre a cama, só se perguntava que mal havia em querer usar tais palavras. Que espécie de maldição carregavam? Para o escritor não havia distinção entre palavras feias e bonitas. O que importava para ele era a forma do texto, a essência. A junção de palavras, a força que fazia as letras vibrarem, tornarem-se vivas. Via apenas como coragem poder escrever sobre o que bem quisesse. E, acima de tudo, libertar-se dos seus sombrios sentimentos, percepções sobre o mundo. O cu do mundo de onde viera.
           
Entrei em casa desejando a morte da mesma forma que a desejei pela manhã. Preparei café, desatei o nó da gravata. Sentei-me à escrivaninha diante do caderno. Pensar na morte também causava-me apreensão. Se depois de sucumbirmos, a morte representasse apenas um simples apagar da consciência – uma opção mais saudável para minha alma – finalmente me veria livre de todo sofrimento. Não precisaria mais sentir angústia. Ainda que esse apagar da consciência representasse um total esquecimento de tudo o que fui, para todo o sempre, sem volta, sem direito a um renascimento, reencarnação. Me conformaria por saber não ter de carregar mais tantas desgraças. Mas por outro lado, a morte poderia seguir por um caminho oposto, um eterno relembrar das memórias. Pensando assim eu mergulhava num estado de puro torpor. Para todo o sempre revivendo memórias, se culpando pelos mesmos fatos, se arrependendo inutilmente sem encontrar, sem apalpar nenhuma espécie de perdão. Preferia arder no inferno a passar a eternidade meditando sobre as minúcias de toda uma vida.
            Faz parte da vida continuar vivendo de um jeito que não conseguimos mais aguentar?

            Enquanto lia, seu pai mastigava um chiclete que passeava por cada canto da boca de dentes amarelos e irregulares. Para conter a ansiedade, o escritor fixou seus olhos naquela goma já sem cor, sendo imprensada, castigada e banhada, por uma saliva que a essa altura deveria ter gosto e cor de nicotina, dados os três cigarros que seu pai consumira desde a sua chegada ao presídio para as visitas bimestrais.
            Seu pai odiou o texto. Mas, ao invés de reclamar das palavras inadequadas, disse, meio envergonhado, ter entendido muito pouco do que leu. Ressaltou com olhar ao longe que não havia entendido porra nenhuma. Num sorriso fraco, o escritor adorou aquelas palavras ditas pelo pai. Principalmente o “porra” que soou tão descompromissado, tão belamente conectado a situação. O ambiente, a goma de mascar, um novo cigarro. Tudo tornou-se encaixado. Tudo magicamente imperfeito, ordinário.
            O pai pediu que não fizesse mais aquilo. Não daria futuro. Podia ser até que virasse maricas. Ou então endoidasse de vez. E o fez prometer que não mostraria a mais ninguém.
            Próximo dos vinte anos, o pai do escritor é solto. Volta para casa mais gordo, mais pálido, com respiração ofegante. Põe o mundo do escritor em desordem, que lamenta não mais poder ir ao presídio. Ele gostava daquele lugar. Em casa, um inferno reina a partir de então. Sua mãe bêbada quase todos os dias. Seu pai a espancando com ira. Os dois fudendo como amantes apaixonados. O escritor percebe que os gemidos de sua mãe, enquanto cavalga sobre o pai, assemelha-se muito aos gritos que dá, quando ele acerta um murro bem no meio da cara dela. Eles se merecem, conclui.
            Uma promessa de trabalho, um escritório de contabilidade, o tira do interior e o coloca na cidade grande. Mesmo odiando a racionalidade dos números, ele os abraça para alcançar a liberdade. Vai embora num dia que mal havia amanhecido. Nunca mais volta.

Num dia de chuva (sempre chove em dias assim) você me disse secamente que era o fim para nós dois. Não houve grandes justificativas. Você foi direta. Você falou. Eu me calei. Nunca fui bom em diálogos. Apesar de que depois, a refletir, eu sempre encontrava as palavras certas para dizer, só que tarde demais. Então eu colocava essas palavras no papel. Você disse que se envolvera com outro homem. Um estrangeiro. Ele a levaria para seu vinhedo na Argentina. Pediu que eu entendesse. Como se me restasse outra opção! Você estava decidida. Dava para enxergar claramente em seus olhos.
Antes de deixar minha casa pela última vez, eu disse que seus lenços floridos iriam combinar muito bem com as uvas, em qualquer estação.
            Às vezes queria uma morte pacata. Simplesmente dormir e não acordar mais. Simples. Fácil. Rápido. Sem dor. Às vezes também queria um estardalhaço ao morrer. Uma notícia no jornal. Meu nome a compor a relação de vítimas fatais. O país inteiro choraria por mim. Não morreria só.
Deixo cair a caneta sobre o papel. Bebo mais um pouco do café (já nem tão quente a essa altura) e tento olhar, através da janela, para o mais longe que meus olhos podem avistar. O infinito. Será no infinito a moradia de Deus?

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Diário da depressão

Café.
Quem dera a vida fosse como café.
Quente. Excitante. Aconchegante.
Cheiro de paz e alívio que concentra a mente.
Com uma caneca de café fumegante, me debruço sobre a janela.
Hoje tenho coragem para apreciar a paisagem da cidade de pedra.
Ainda que o que vejo não me transporte para um lugar onde queira ficar.
É noite. Ouço o silêncio da morte. Invejo todas as outras vidas que a essa hora estão comemorando as conquistas e prazeres de um dia. Uma multidão de gente faz uma multidão de planos. Enquanto me fixo num só lugar, remoendo passados, o mundo segue. Para onde?
O amor acaba. A vida segue em precipício.
Ouço latidos de cães. Uivos que mais se assemelham a prantos.
Não sei se os cães apenas latem - numa conversa que só eles entendem - ou simplesmente respondem com sofreguidão meus lamentos.
Eu e os cães da noite.
Uma diatribe esquizofrênica.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Diário da depressão

Custo a me levantar da cama, depois de horas acordado sobre o grosso edredom que ajuda a escurecer ainda mais o quarto. Só de cueca, vou até à cozinha. Bebo um copo de água da torneira. Morna. Não me incomodo. Me apoio na pia, fecho os olhos. Sinto-me zonzo. Dormente. Penso em como será o dia. Em como serão as horas. Minutos. Segundos. Instantes sem a vida que outrora foi minha. 
Sem você.
A vida está sendo muito mais difícil sem você.
Tento ao menos tomar um banho. E consigo. O tempo se arrasta um pouco mais enquanto a mente tenta se livrar da dor invasiva. Tento não pensar em nada. Você continua a pulsar em meu peito. Dolorido. Como pude me permitir apaixonar? 
Mais um amor impossível numa contagem desumana para qualquer coração humano.
O mais novo amor impossível sempre o remeterá ao mesmo sofrimento do primeiro.
Nunca esquecerei quando, aos 15 anos, quase morri de tanta amar.
O amor não deveria nos machucar tanto.
Fecho o chuveiro. Deixo o corpo se arrepiar de frio. Penso ser essa a sensação salvadora. Sentir algo real em meu corpo talvez possa desviar a dor abstrata em meu peito. Visto uma roupa simples. Aliás uma roupa que já venho vestindo há dias. Tem cheiro ruim. Suor. Azedo. Meu cheiro está ruim. 
Coloco um pouco de água no  fogo pra ferver. Um café irá me fazer bem. Minha mãe sempre me serve um café na intenção de me fazer bem. Penso no amor dela. Quero colo. Ela está longe. Estou sozinho neste apartamento sombrio. Ninguém disposto a ouvir minhas lamúrias. 
Bebo o café. Volto para a cama. Cubro meu rosto com o grosso edredom. Desejo apenas que o dia seja mais curto, que a vida seja mais curta.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Diário da depressão

Hoje estou a sentir muita dor. Na alma. No peito. Nos pés, nas pernas, na cabeça e nos olhos de onde só o que se tem agora é uma sequidão depois de um resto de lágrimas.
Chego em casa, sento-me as pressas no sofá, como se a qualquer momento pudesse cair. Não acendo a luz. Não abro a janela. Penso no meu silêncio. Penso no que posso fazer para abrandar a dor. Nada encontro em resposta. Fecho os olhos. Busco por pensamentos positivos. Mas tudo é dor.
Hoje tudo é dor. Dor maior que a de ontem. Dor que  já antevê o dia desastroso que virá amanhã.
Tenho tido medos enormes de mim. A hipótese do suicídio, de ir embora. Nunca antes (mesmo quando a depressão estraçalhou meu corpo e minha mente dez anos atrás) eu estive tão certo de que morrer talvez seja a única solução para o alívio da dor.
Dor... Só Dor. Presente, passado e futuro resumidos em dor.
Arrependimentos, medo, solidão. Dor.
Num esforço de sair da paralisia, arrasto-me até o banheiro. Tiro as roupas as pressas, temendo desistir. Abro o chuveiro de água morna. Mas o pouco que aguento em pé não me alivia a dor. Sento sobre as pernas. Abaixo a cabeça e o choro convulsivo retorna. Meus urros de dor e morte não me permitem mais escutar o som tranquilizador das águas caindo sobre minha cabeça. O som que se ouve é de tempestade, catástrofe. Água, urros, dor, morte.
Choro e esqueço-me de onde estou. Apoiando-me nas paredes que deslizam, custo a me colocar de pé. Desligo o chuveiro. Apago as luzes. Fecho a porta do quarto. Me encolho na cama. Penso em Deus, no milagre da cura. Penso estar muito longe de alcançar qualquer coisa. Choro de novo. Quero apagar de vez. Quero apenas ir embora. Me deixe ir embora.

terça-feira, 23 de abril de 2013

O amor me faz falta


           Quando o amor acaba nada mais importa. As coisas perdem totalmente o sentido. Quando o amor acaba só o que fica é o vazio. Um silêncio em tudo à volta.  Um grito de muitas almas que corta o interior em constante uníssono, desafinado. Berros do desespero que lhe corrompe o ser a dizer incessantemente que a vida perde a razão de existir porque você jamais terá a pessoa que ama. Simples ficar quieto, sem voz. Impossível calar os pensamentos. O amor acaba e a vida segue em precipício. O pior é sermos privado da convivência no mesmo mundo. O amor nunca devia terminar. Para sempre o amor deveria ser a mais doce das criaturas. Para sempre o amor deveria ser aquilo que de melhor a vida pode lhe oferecer.
            Aos poucos o silêncio é só o que se ouve. O amor longe daqui. Em outros corações. Exceto no meu que só sabe abrigar tristeza e dor. Em território onde tristeza e dor abrangem o amor fica impedido de acampar.