É possível sentir-se atraído primeiro pela personalidade de um autor para
só depois interessar-se por seus livros? A pergunta me faz refletir no quanto a
história de vida de um determinado escritor acaba influenciando a maneira como
dirigimos nosso olhar para suas obras, pautando assim nossa crítica e
interferindo diretamente num processo de identificação. Isso aconteceu comigo
duas vezes: com Virgínia Woolf e com Valter Hugo Mãe.
Em 2002, sem ter lido sequer um
livro de Virgínia Woolf e sem saber nada ou quase nada dessa grande escritora inglesa,
eu entrei numa extinta sala de cinema de Icaraí para assistir ao aclamado e premiado
filme As Horas. A ansiedade para conferir
a película se devia muito mais ao diretor Stephen Daldry (que no ano anterior
havia dirigido Billy Elliot, uma
agradável surpresa) do que à história em si que, lido rapidamente nos jornais, verifiquei
que girava em torno da vida de três mulheres em épocas e estilos distintos.
Fora as atuações sempre marcantes de Meryl Streep e Julianne Moore e uma Nicole
Kidman que buscava um lugar ao sol após ter se divorciado do galã Tom Cruise eu
não tinha outros atrativos para encarar quase duas horas de puro drama. Vale
destacar que Nicole Kidman recebeu a estatueta do Oscar por interpretar
Virginia Woolf e dois anos depois arrancaria aplausos no Festival de Cannes pelo
filme Dogville, numa parceria bem
sucedia com Lars Von Trier. Resumindo, As
Horas é um filme espetacular que recebeu nove indicações ao Oscar: melhor
filme, melhor diretor, melhor atriz (Nicole Kidman), melhor ator coadjuvante
(Ed Harris), melhor atriz coadjuvante (Julianne Moore), melhor roteiro
adaptado, melhor edição, melhor figurino e melhor trilha sonora.
O fato é que quando o filme chegou
ao fim e a música de Philip Glass entoou mais forte junto com a ficha técnica,
eu estava tomado por uma pressão nos ossos e no peito que me levaram a algumas
lágrimas exaustivas. Em um efeito de hipnose eu ainda não conseguia identificar
a que se deviam as lágrimas e o torpor. Taciturno, custei a me levantar. Um dos
últimos a deixar a sala eu saí com passos trôpegos sem nenhuma vontade de voltar
para casa. Eu precisava caminhar. E assim eu fiz. Por horas, sentindo-me invisível,
eu caminhei pela orla da praia de Icaraí. Por fim, concluí que não era só o
filme que me deixara exultante, mas sim a história de vida de Virgínia Woolf.
Foi também um efeito de identificação imediata com a escritora. Não me refiro
aqui a seus escritos nem muito menos a ideia de me comparar a ela, mas tão
somente à personalidade melancólica de Virgínia. Na época eu tinha somente
vontade de escrever, mas sentia como se me faltassem armas, competência e
disciplina para sentar-me e simplesmente escrever. Eu queria escrever, mas não
fazia ideia do que era dedicar-me à literatura. Dedicação à escrita e a literatura
como peça fundamental de sobrevivência foi o que vi em Virgínia Woolf. Em seus
aspectos técnicos – roteiro, direção, elenco, trilha sonora, montagem e edição
– o filme é um primor. Mas não fosse a vida conturbada de Virgínia até o
suicídio, seus momentos de devaneios para criar e escrever, o filme corria o
risco de cair na vala comum destinada aos dramalhões hollywoodianos.
De repente eu
queria desesperadamente conhecer e saber tudo sobre Virgínia Woolf. Comprei o
livro homônimo (aparentemente infilmável) que serviu de base para a construção
do roteiro. Da autoria de Michael Cunningham, foi vencedor do prêmio Pulitzer. Nos
meses seguintes pesquisei bastante sobre a vida da escritora. Virgínia Woolf
perdeu a mãe aos treze anos e passou a enfrentar severas crises depressivas
após isso, acompanhadas de alucinações auditivas. Dizia ouvir vozes, além de
incapacitantes dores de cabeça. Suicidou-se em 1941, mergulhando para a morte
no Rio Ouse.
Demorou muitos anos para que eu
lesse Virgínia. E vivo me perguntando o porquê. Por que essa lentidão já que a
paixão por Virgínia foi imediata. Hoje não posso afirmar com convicção, mas
ouso repousar minhas reflexões sobre duas hipóteses que são coerentes. Em 2002,
quando assisti ao filme, eu era muito imaturo, possuidor do desejo de ser um
escritor, mas com pouco conhecimento em literatura. Até então eu gostava de ler
Sidney Sheldon, Danielle Steel e Stephen King. Nada contra mas era preciso
alçar voo. Ir além. Também fosse possível que eu tivesse medo de ler Virgínia
por já prever de antemão que teria sérios problemas para interagir com uma
escritora proclamada pelos intelectuais e pelos mais renomados críticos de
literatura por ser pioneira no chamado “fluxo de consciência” e justamente por
ser complexa e de difícil leitura.
Virgínia Woolf ganhou espaço entre meus livros quando surgiu em mim uma necessidade de mudança de rumo nas leituras. Chegou junto com outros grandes autores: José Saramago, Dostoiévski, Roberto Bolaño, Philip Roth, Clarice Lispector. Li somente dois livros de Virgínia: Mrs. Daloway e O quarto de Jacob. Que ninguém se engane. É uma leitura difícil, confesso, mas que reflete exatamente quem foi essa grande mulher: uma escritora complexa, uma escrita (um tanto delirante, se me permitem dizer) que não se prende propriamente a uma trama. Terei de ler outros livros de sua autoria, não sem antes reler esse dois títulos que citei.
E é justamente nessa época que entra Valter Hugo Mãe, a quem me referi no
início do texto. Aconteceu em 2011. Eu estava em êxtase naquele ano. Pela
primeira vez eu havia me organizado para ir a Festa Literária Internacional de
Paraty (FLIP), algo que vinha protelando nas edições anteriores por conta dos
velhos problemas de sempre: falta de dinheiro e de tempo. Consegui juntar uma grana
e programei as férias para o período da festa. Eu, finalmente, conheceria
Paraty e mergulharia na FLIP. Comprei ingressos para praticamente todas as
mesas literárias. Valter Hugo Mãe chamou minha atenção pela ausência de letras
maiúsculas em seus textos, inclusive assinava até então só utilizando
minúsculas. Bastou assistir sua apresentação para que eu fosse fisgado pelo
cara. Com um discurso simples, carismático, empolgante, Valter encantou a plateia.
Foi aplaudido após ler uma carta que escreveu em homenagem ao Brasil.
Trecho final da carta: “... sonhei sempre em vir ao Brasil, e vim várias vezes. Faltava vir como escritor. Publicado e recebido. Pois aqui estou. A FLIP fez isso. Não esquecerei nunca. Sinto que fazem de mim um homem de ouro. Agradeço a todos muito por isso.”
Vale a pena assistir na íntegra no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=euD46SXKaOc.
Conclusão: seus livros esgotaram. Autografou por mais de duas horas. Eu
fiquei um bom tempo na fila, mas valeu a pena. Valter conversou brevemente
comigo, deixou que eu tirasse fotos ao seu lado e, simplesmente, me encantou. Lembro
que sai à caça de todos os seus livros e li um atrás do outro: o remorso de
baltazar serapião, o nosso reino, a máquina de fazer espanhóis, o apocalipse
dos trabalhadores, O Filho de Mil Homens. A repetição do fato me levou de volta
à Virgínia Woolf. Novamente eu me deixava envolver pela personalidade de um
autor para só depois ir ao encontro de seus livros.
A inspiração para escrever esse
artigo veio depois que assisti ao filme Flores Raras, de Bruno Barreto. Nunca
li nada de Elizabeth Bishop, mas confesso ter ficado bastante interessado em
conhecer mais da vida da poeta norte-americana.
E com vocês? Já ocorreu algo
parecido? O que acham? É possível sentir-se atraído primeiro pela personalidade
de um autor para só depois interessar-se por seus livros? E quais as
influências do histórico de vida de um escritor sobre a percepção que temos de
suas obras?
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