terça-feira, 22 de outubro de 2013

Primeiras páginas do livro "RETORNO AO PÓ"


          Silêncio. Tudo se resumia num perturbador e completo silêncio. Nada, exterior ao seu corpo, fazia mais sentido e não conseguia pensar na palavra “futuro”. Depois de todos os acontecimentos em sua vida, não era mais necessário preocupar-se com ela.
          Catharina França, hoje com trinta anos, encontrava-se com os olhares perdidos ao longe, aprisionada solitariamente numa cela com menos de oito metros quadrados, pensando como num rápido filme em todas as coisas boas e ruins que outrora sucederam e como pôde se deixar enlouquecer, no sentido mais amplo da palavra, com os amores, traições, desafetos e uma grande dúvida sobre vingança. A cela onde estava era suja, com suas paredes mofadas pela umidade e com alguns rabiscos e nomes, levando-a ao extremo da claustrofobia, com a impressão de ser esprimida por aquele pequeno cubo. No seu interior, havia apenas um colchonete estendido sobre o chão e um pequeno e fino cobertor para que pudesse se cobrir. Lá fora, o dia era claro e quente, deduzido pelos poucos raios de sol que penetravam através de um pequeno buraco por cima de sua cabeça, mas o frio que sentia, em virtude de uma febre alta, era de congelar fazendo seus lábios tremerem e seus dentes rangerem, produzindo um pequeno som que, adicionado a um fraco gemido, resultado de um inexplicável cansaço, acabava por eliminar em parte o silêncio caótico do lugar.
            Já  fazia duas semanas desde o seu encarceramento e estava difícil de tirar aquele dia da memória. O dia em que, sem saber até o momento a cronologia e a veracidade dos fatos, assassinou o seu grande amor ou aquele que um dia ela o considerou ser. A única coisa da qual consegue se recordar é do barulho de estrondosos e ensurdecedores tiros. Catharina tinha a certeza de naquela hora estar segurando uma arma, mas não se lembrava como fizera para apertar o gatilho e os tiros, então, serem disparados. Catharina sabia também que era perfeitamente capaz de matar. Sua memória falhava e se tornava penoso demais tentar encaixar os fatos.
            Seu julgamento se procederia dentro de duas semanas e, se considerada culpada, seria submetida a uma pena mínima de cinco anos de prisão, porém esse fator não a preocupava tanto. Num estado de profunda depressão, ela não tinha mais motivação para recomeçar uma “nova vida”.  Seu rosto, envelhecido como se estivesse adiantado no tempo e seus olhos fundos e arroxeados ao redor registravam horas de incessante pranto. Sua beleza que havia encantado os palcos e as telas do Brasil, seu sorriso alegre e seu corpo esteticamente correto, capaz de deixar qualquer homem nocauteado, davam a impressão de terem desaparecido para sempre, entrando numa fase de desgaste físico irreversível. O dinheiro e a fama talvez fossem as premissas e a grande causa de sua infelicidade. Era uma pena que no Brasil ainda não existisse a pena de morte, pensou ela. Talvez fosse melhor assim.
            O país havia parado devido a esse crime, um crime inexplicável diante do povo. A imprensa estaria reunida e espremida naquela plateia, com seus gravadores e máquinas fotográficas prontos para o julgamento registrando tudo e não deixando que nada se perdesse.  Seria a sua primeira aparição perante o público e os jornalistas. Já havia se passado quatro meses desde a sua declaração em rede nacional de televisão que estava abandonando a carreira artística para se dedicar somente à família. Mesmo assim, os brasileiros compreenderam tal atitude e continuaram a amá-la do mesmo modo. Com esse crime, ela voltou a ser notícia, só que agora ela não interpretava nenhum de seus personagens, enfrentava apenas a vida real.
 Catharina tinha apenas esperanças em relação à presença de algumas pessoas. Talvez assim não se sentiria tão sozinha. Ansiava pela presença mais que necessária de quatro homens, quatro amigos que viraram verdadeiros estranhos: Oscar Venturini - o homem que atiçou a sua ambição; Faustino Denegri - o homem que fertilizou a sua ambição; João Francisco, seu pai – o homem que a impulsionou para a maturidade, tornando-a uma mulher de verdade e Robert Júnior, o único homem que amou em toda a vida. A presença de Oscar era importante para ajudá-la a sustentar as forças e concretizar um pedido de desculpas em dívida há muito tempo. Mas Faustino era o único que podia fazer algo. Sua forte influência com políticos e a mídia o tornava uma pessoa com plenos poderes para tal – era o homem que havia lhe proporcionado seus mais ricos desejos. Seu pai só seria de grande valia se pudesse defendê-la no tribunal, o que não ocorreria, pois indicara um outro advogado para lutar por sua absolvição. Robert era o único que tinha alguma chance de aparecer, mas o havia rejeitado por tantas vezes que deveria ter entendido o recado para não continuar a persegui-la. Portanto, o mais provável, infelizmente, era a ausência de todos eles e Catharina, melhor do que ninguém, compreendia as razões dessa ausência. Fora amante, filha ingrata e mulher insensível e os usou como alavanca para conseguir o que queria e os descartou com extrema facilidade, deixando rancores e desdém nos seus corações. Sentia vergonha dela mesma. Além do mais, um deles estava morto e era por isso que estava ali.
Naquela tarde, Catharina não conseguia nem ao menos rezar. A fé havia sido extinta de seu corpo e de sua mente e Deus ainda permanecia como um mistério. Cerrou os olhos sentindo um suave tremor de seu corpo e, pela primeira vez, sentiu seus batimentos cardíacos acelerarem por causa do medo. O mundo que um dia a fez sentir excitamento pela vida, a fazia sentir pena de si mesma.
Mal havia fechado os olhos e pôde ouvir alguns passos no corredor daquele presídio. De          repente o barulho sumiu e teve certeza de que alguém estava em frente a sua cela, parado e a observando, com a respiração ofegante. Essa certeza a fez abrir os olhos, mas sua visão estava um pouco deturpada, tendo dificuldades para enxergar qualquer coisa diante de si. A princípio, viu dois homens. Não precisou de muito esforço para reconhecer um deles. Seu uniforme de policial denunciava ser apenas um dos guardas a vigiá-la permanentemente como se fosse uma assassina perigosa, pronta para fugir assim que tivesse uma chance. O outro não conseguia reconhecer de jeito nenhum. Ainda deitada, o rosto do desconhecido era coberto por uma sombra que só dificultava a tarefa de ser reconhecido. Era inútil. Por mais que forçasse sua visão, o que fazia com que sua cabeça latejasse ainda mais de dor, não chegava a nenhuma conclusão.
Foi então que Catharina pôde ouvir a voz do guarda que lhe pedia, de maneira educada, para levantar-se, pois tinha uma visita importante. Ela então ergueu seu corpo com certa dificuldade até ficar de pé e, saindo do fundo da cela, se aproximou das grades que a separavam da liberdade do mundo lá fora. Encostou sua cabeça nas barras de ferro para olhar de perto aquele homem parado a sua frente e que permanecia em silêncio. Catharina não o conhecia. Não agora.
Um instante depois, a cela se abriu e o estranho entrou, pedindo licença para se sentar numa cadeira alojada lá dentro. Acomodou-se, tirou de dentro de uma pasta uns papéis e pediu que Catharina o escutasse, pois queria contar-lhe algo que seria útil quando começasse a batalha no tribunal.
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