terça-feira, 28 de maio de 2013

Noite de autógrafos do meu novo romance


Convido a todos para a noite de autógrafos do meu terceiro romance :
"AMOR EM TEMPOS DE SOLIDÃO"

Vinho; exibição de trechos do filme "As Horas"; 
Um bate-papo descontraído sobre o processo de construção do livro (e suas consequências);
E mais vinho, até que sequem todas as garrafas.

Eis os protagonistas deste livro: um estupro, uma criança com paralisia cerebral (e que, misteriosamente, deixa de crescer aos dois anos de idade), uma profunda depressão e o amor (o abstrato e simbólico amor) como única fonte de cura, perdão e redenção.

"O amor é imperfeito.
A vida é imprevisível.
A escolha é nossa..."

Dia 7 de junho as 19h, no Espaço GLIA.
Rua Dr. Nilo Peçanha, 142 - Ingá - Niterói.


sábado, 18 de maio de 2013

Um último dia na vida de um escritor


Ao abrir meus olhos pela manhã, ainda tinha em mente os mesmos planos da noite anterior: hoje eu iria morrer. Ato contínuo, sentei-me na cama, pousei os pés no assoalho frio de madeira, cerrei os olhos com força. Um estranho cansaço repousado em meus ombros fazia-me não desejar dar um passo sequer. Mas eram sete horas da manhã e meu trabalho, contrário a todos os meus intentos, me aguardava. Seria preciso entrar no escritório de contabilidade onde trabalho por mais de vinte anos.
Estar deprimido torna o mundo e as pessoas completos desconhecidos.
Ao menos retira de nós tudo aquilo que achávamos conhecer sobre a vida.
            Mediante o desânimo, realizei os mesmos gestos de todos os dias, de maneira robótica, sem dar-me conta da importância de cada ato. Para mim, em nada acrescentava o fato de levantar-me, ir de encontro a um serviço maçante, mecânico, mas impossível de deixar porque precisava do dinheiro para sustentar-me.
            Aos nove anos decidi que seria um escritor; aos vinte e cinco concluí meu primeiro romance; aos trinta descobri, com tristeza, que ninguém queria publicar meus escritos. Mesmo assim persisti em escrever, sabendo ser preciso continuar a contar histórias, mesmo que fossem lidas por poucas pessoas. Apenas alguns amigos mais chegados, interessados em se aproximar, por curiosidade, a um cara calado, reservado, de aparência triste, melancólico, que se dizia ser um escritor.
            Sei que sou um escritor, porque em minhas fantasias nenhuma outra coisa conseguiria ser. Dói somente o fato de não poder ser em tempo integral aquilo que idealizo para uma vida inteira. Quase a chegar na metade da caminhada, uma espécie de realidade recheada de loucura foi o que sobrou para definir meus dias arrastados, tediosos, cheios de mágoas. Já não aguento mais.

Numa pequena cidade do interior nasce o escritor. A lua está cheia. Uma enchente varre tudo o que vê pela frente. Um terremoto do outro lado do planeta deixa milhares de vítimas. Um pregador no norte, a crer no fim do mundo, faz com que uma multidão cometa suicídio coletivo e também se mata ao final. O mundo não acaba.
Uma criança prematura. Pouco peso, indefesa. Internada por dias numa maternidade cheia de ratos. Os ratos e as bostas dos ratos o seguiriam por todos os cantos. Não só os ratos, mas todos os sinais deixados por aquela noite.
Muitos disseram que não ia vingar. Muitos atribuíam aos sinais o fato da criança ter crescido esquisita, estranha. Muitos tinham medo. Uma feiticeira dirá ao jovem escritor, anos mais tarde, que todas os que morreram na noite do seu nascimento encontram-se ao redor dele, a sussurrarem intermináveis histórias, a se arrependerem continuamente. Dirá ainda que são esses espíritos que o estimulam a escrever, a contar interessantes histórias. A materialização no papel é a única forma de ganharem vida novamente. O escritor não acreditará. Em pouca coisa acredita. Mas essa hipótese o atormentará um pouco mais.
            Verdade ou mentira, ele tem fantasmas na cabeça.

Tenho fantasmas na cabeça. E bosta de rato no chão do meu banheiro. Sei que eles estão aqui a me observar.
Iniciei meu ritual diário como se estivesse a escrever o prólogo de uma tragédia. Barbeei-me, tomei banho, enxuguei-me, borrifei um pouco de perfume por trás das orelhas. Voltei ao quarto, abri o guarda-roupa, retirei um dos muitos ternos, vesti a calça, as meias, a camisa, calcei os sapatos. De volta a encarar o espelho, apertei o laço da gravata em volta do pescoço, vesti o paletó. Pronto!
Ao fechar a porta atrás de mim, iniciei a caminhada com o coração carregado da mesma sensação. A ilusão de que os sonhos morriam com o acordar, sendo o sono um santo remédio para as dores da alma, uma dormência temporária para o turbilhão de pensamentos a chacoalhar em minha mente. A sensação de que o trabalho é uma espécie de veneno que me entorpece com uma promessa de morte que nunca se cumpre.

A mãe do escritor tem mania de comer papel higiênico. Começou durante os primeiros meses da gravidez. Era apenas um desejo a ser satisfeito. Compulsivamente passou a picar pedaços de papel e colocá-los na boca. No supermercado, sempre comprava os de folha dupla, sem perfume, que pareciam derreter na boca, tamanha maciez. Em frente à televisão, comia como quem come algodão doce. Numa noite facilmente se ia quase a metade de um rolo.
O cu do mundo foi a terra onde o escritor foi gerado. Tentaria retornar para esse mundo por muitos anos.
A imperfeição era sua casa.

Há muito tempo tenho por hábito tomar o café-da-manhã numa padaria localizada a três quarteirões de minha casa. Por duas questões essa decisão é especial: primeiro porque trabalho algum há nisso e segundo porque, na calçada em frente, uma jovem mulher de não mais de vinte e cinco anos chega cedo para dar início a sua venda de flores. Tenho nessa paisagem a energia necessária para enfrentar as horas pelas quais se estenderá o longo dia. Todos me conhecem por aqui. Ouço cumprimentos quando chego, mas nada mais recebo que sorrisos fracos, quase mortos, sem mostrar os dentes. Vou direto à mesa de sempre, localizada no interior, próxima à vidraça de onde avisto o outro lado da rua sem incômodo algum. Ainda não vejo a jovem florista. Ainda é cedo.
            É o tempo suficiente para o jovem rapaz que me serve todas as manhãs trazer-me o cardápio de sempre: uma xícara de café fumegante acompanhada de duas fatias de pão com uma fina camada de manteiga e um pedaço de bolo. Agradeço, procurando ser gentil. Gentil a minha maneira. Olho para o rapaz com generosidade, invejo a simplicidade de viver que não possuo e que sempre visualizo nos olhos das outras pessoas (que me dão a impressão de serem felizes com o pouco que a vida os dá). Uma pena, pensei, mas não há meios de viver outra vida.

Num igarapé de pouca profundidade, a correr no interior da mata, na região central do Pará, uma garota de doze anos tem seus cabelos arrancados. O escalpelamento acontece dentro de uma embarcação sem segurança nenhuma, que tem o motor e seu eixo descobertos. Quando o motor é ligado, o eixo gira em alta velocidade. Durante a viagem, como é comum, o barco fica alagado. Passageiros têm que tirar o excesso d'água. A garota abaixa para pegar uma vasilha. Ao se aproximar do eixo, que gira muito rápido, seus cabelos cumpridos e presos, são arrancados violentamente.
Ela desmaia.
A garota perde o couro cabeludo e tem parte da orelha decepada. Cabelo algum jamais cresceu. Passa a usar no alto da cabeça um lenço florido. Longo e que recai sobre um de seus ombros. Um cabelo artificial que tem uma tintura especial, uma cor diferente: cor de jardim com flores.

Quando o escritor completa nove anos, seu pai é lançado num presídio. O pai do escritor é preso pelo acúmulo de pequenos crimes. Porte ilegal de armas. Assaltos em estabelecimentos comerciais. Falsificação de documentos. Tráfico de drogas. Esse último foi o que determinou sua prisão de vez. Um crime que virou motivo de piada. Na fronteira com o Paraguai, o pai do escritor é apreendido com três gomos de cocaína compactada enfiados no rabo.
(como ele achou que aquilo sairia facilmente?)
Para retirar a droga foi necessária uma cirurgia complicada, demoradas horas. Por fim, a droga foi extraída ilesa, de forma que não causou grandes danos a mula que a carregava para outro país. Na prisão, o pai do escritor ficou conhecido como o “cu de ouro”. E, na prisão, todos queriam provar o “cu de ouro”. Vários detentos o arrombaram em meio a gargalhadas, assombros e ameaças.

Quando provo o café quente e dirijo meus olhares para o outro lado da rua vejo a bela moça por quem compreendo sentir um amor inatingível. Meu coração livra-se de toda a apreensão para deleitar-me no poder que aquela beleza tem de me acalmar. A moça, sempre a sorrir, com seus cabelos loiros e longos, presos num rabo de cavalo mal feito, vai tirando do interior da loja os muitos ramos de flores e colocando-os na calçada dando um colorido muito especial à rua. Não sei o nome dela, sobre o que gosta de fazer, seus sonhos, seus objetivos, mas sei apenas que gosto de apreciá-la. E, sinceramente, acho que deva permanecer assim. Minha paixão se move pelos mistérios que a cercam. Se algum dia chegar a trocar palavras, acredito que parte da beleza que me atrai será obscurecida pela realidade crua que torna a vida mais rígida, menos fantasiosa e mais sofrida.
            O que me falta mesmo na vida é um amor.
Mas não será essa a busca de toda uma vida?
O amor é para ser encontrado?
Ou o amor é para ser descoberto, compreendido?

Um concurso público foi o grande cajado de Moisés a abrir uma poderosa fenda no mar. Por essa passagem a garota do lenço florido amarrado na cabeça vai-se embora. Uma outra cidade a recebe. Nunca mais olha para trás. A esquecer do drama e do preconceito, jura viver uma outra vida. Jura encontrar um amor.
E encontra...

Olho no relógio. Estou atrasado. Olho para a moça como quem olha para o infinito. Gostaria de fudê-la (ou fodê-la?). Qual seria o correto? Não sei.
Me ponho a caminho do trabalho. Ao chegar no escritório, busquei aparentar ser uma pessoa normal, mesmo sabendo estar vivendo sob a mais anormal das circunstâncias. Cumprimentei a todos, cumpri minhas tarefas com afinco, prostrei-me diante de diversas planilhas de cálculos, recheadas de números, circundado por fórmulas óbvias, impedido de fantasias, preso como quem é castigado, proibido de escrever as tantas histórias que inundavam meu ser. Conversava com meus colegas de trabalho normalmente, mantendo a calma; ria quando um deles dizia algo engraçado, fingia estar atento às conversas na hora do almoço, mas só sentia-me um pouco melhor quando o expediente chegava ao fim.
            Aquele escritório me lembrava os lenços floridos. Foi ali que a conheci. Lembro-me perfeitamente do dia em que a vi pela primeira vez. Apaixonei-me. Em seu rosto, uma mutilação. Parte de sua orelha decepada ficava visível. Em lugar do cabelo tinha um lenço florido a cobrir o alto de sua cabeça. Nunca tentei imaginar como ficaria se tivesse cabelos. Sempre preferi os lenços com estampa de flores. Nenhuma outra mulher havia me atraído tanto. Tendo entender porque. E compreendo. Era imperfeita. Linda, mas imperfeita. Seu rosto era carregado de tragédias. Bastava encará-la para poder identificar resquícios de uma tragédia. Assim como eu, ela trazia um selo de identificação. Éramos monstros a sobreviverem num mundo certinho demais, que sempre desprezei. Eu a amei. Ela correspondeu ao meu amor.
Uma pena que acabou. Uma pena...
A sensação de não-pertencimento a este mundo provocava em mim diversas dores. Primeiro, por se tratar de uma afirmação incontestável. Segundo por ser o suicídio a única esperança que se apresentava diante de tamanho desconforto.
           
            O presídio onde o pai do escritor está mudará toda a trajetória do garoto em transformação. Uma sórdida inspiração, ele dirá mais tarde. Um contato, como se já esperado há anos, com um mundo em desordem, um mundo imperfeito. Seis meses após a prisão, um juiz autoriza o escritor a visitar seu pai. Decisão essa que talvez tenha vindo por também ser pai e, tentando um mínimo de humanização, coloca-se no lugar do preso. Quanta falta deveria sentir os pais de seus filhos quando lançados naquele lugar imundo. Dependendo do comportamento do pai, o escritor poderia visitá-lo em ocasiões regulares, a acontecer de dois em dois meses.
No primeiro dia, o escritor poucas palavras disse. Falta alguma sentia do pai, mas calou-se frente a suas verdadeiras emoções. O rosto contorcido do pai, algumas lágrimas em contato com a pele enrugada o impactaram de certa forma. A atmosfera à volta o chocaria mais que tudo. Passou a maior parte do tempo a reparar em cada detalhe ao redor. Lixos espalhados, uma vala de esgoto que perpassava o meio do pátio. O cheiro que recendia dali era podre. Homens com uma mesma roupa encardida. Fumando cigarros com olhares perdidos ao longe. Desilusão foi o que viu naqueles olhares. Em alguns o ódio petrificava a face. Tudo era sem vida. Olhos de vidro, embaçados. Lábios rachados, cabelos longos, uma sujeira entranhada em cada pedaço de carne, onde outrora havia uma expressão qualquer.
Num momento de distração, o escritor caminhou por entre os detentos. Quando mãe e pai conversavam mentiras. Pois ela não dizia a ele que comia papel higiênico e ele não confessava estar farto de ser enrabado quase todas as noites. Por alguns segundos chegou a fechar os olhos. Absorveu todo o cheiro de imundície. A miséria era o destino de todos os homens? Ou a miséria era a casa principal dos homens? O certo era que o escritor sentiu-se num retorno ao lar. O cu do mundo. O cu do mundo foi o que constatou estando naquele presídio. Um mundo imperfeito. Essa imperfeição fundamentaria todos os seus escritos. Não sabe se quis ser escritor a partir disso ou apenas ganhou a ferramenta ideal para vir tornar a ser o que era seu destino desde o início, desde quando foi gerado, numa foda sem prazer, permeada por álcool, heroína, música em alto volume, a terra a girar.
Ao despedir-se do pai, lamentou ter de ir embora. Seu pai alegrou-se na inocência de achar que o filho queria tê-lo ao seu lado. O escritor não quebrou o encanto, mas regozijou-se por já tecer sua própria ficção. Reforçou a magia ao dizer que não via a hora de poder voltar. Fechou os olhos, absorveu o cheiro podre. Enquanto saía, tentava a todo custo registrar na memória aquele cheiro ruim.
Sua primeira produção literária se dá aos nove anos, mais especificamente, três semanas após a visita ao presídio. Um curto texto. Dois parágrafos que ultrapassavam pouco mais da metade de uma folha. Uma escrita densa. Uma narrativa irregular. Fez questão de mostrar à mãe, sendo ela a primeira a ler. Tremeu todo ele ao ver sua mãe, em silêncio, segurar o papel e correr os olhos por cada linha. Tremia por ansiedade e também por temer que a qualquer instante, sua mãe pudesse picar todo o material e, pedaço a pedaço, ir colocando na boca a mastigar em pura fome.
Por fim, sua mãe cravou seus grandes olhos nele. Deu tapas na cabeça do jovem escritor e agarrou sua orelha, torcendo com demasiada força. Disse que aquilo era um material pecaminoso, recheado de palavras pornográficas e ficou a perguntar o que o filho tinha na cabeça? O escritor gemeu, implorou. Sem entender tal reação, agonizou com a dor e com o cheiro de merda que vinha direto da boca de sua mãe. O cheiro era ruim, imperfeito. A reação da mãe, ao invés de desanimá-lo, só o impulsionou ainda mais para o alto. Para o pequeno escritor, um texto deveria causar no leitor estranheza, impacto.
No vazio do quarto, releu sua primeira obra-prima. Em voz alta cantou as palavras que tanto desagradaram sua mãe. Deitado de bruços sobre a cama, só se perguntava que mal havia em querer usar tais palavras. Que espécie de maldição carregavam? Para o escritor não havia distinção entre palavras feias e bonitas. O que importava para ele era a forma do texto, a essência. A junção de palavras, a força que fazia as letras vibrarem, tornarem-se vivas. Via apenas como coragem poder escrever sobre o que bem quisesse. E, acima de tudo, libertar-se dos seus sombrios sentimentos, percepções sobre o mundo. O cu do mundo de onde viera.
           
Entrei em casa desejando a morte da mesma forma que a desejei pela manhã. Preparei café, desatei o nó da gravata. Sentei-me à escrivaninha diante do caderno. Pensar na morte também causava-me apreensão. Se depois de sucumbirmos, a morte representasse apenas um simples apagar da consciência – uma opção mais saudável para minha alma – finalmente me veria livre de todo sofrimento. Não precisaria mais sentir angústia. Ainda que esse apagar da consciência representasse um total esquecimento de tudo o que fui, para todo o sempre, sem volta, sem direito a um renascimento, reencarnação. Me conformaria por saber não ter de carregar mais tantas desgraças. Mas por outro lado, a morte poderia seguir por um caminho oposto, um eterno relembrar das memórias. Pensando assim eu mergulhava num estado de puro torpor. Para todo o sempre revivendo memórias, se culpando pelos mesmos fatos, se arrependendo inutilmente sem encontrar, sem apalpar nenhuma espécie de perdão. Preferia arder no inferno a passar a eternidade meditando sobre as minúcias de toda uma vida.
            Faz parte da vida continuar vivendo de um jeito que não conseguimos mais aguentar?

            Enquanto lia, seu pai mastigava um chiclete que passeava por cada canto da boca de dentes amarelos e irregulares. Para conter a ansiedade, o escritor fixou seus olhos naquela goma já sem cor, sendo imprensada, castigada e banhada, por uma saliva que a essa altura deveria ter gosto e cor de nicotina, dados os três cigarros que seu pai consumira desde a sua chegada ao presídio para as visitas bimestrais.
            Seu pai odiou o texto. Mas, ao invés de reclamar das palavras inadequadas, disse, meio envergonhado, ter entendido muito pouco do que leu. Ressaltou com olhar ao longe que não havia entendido porra nenhuma. Num sorriso fraco, o escritor adorou aquelas palavras ditas pelo pai. Principalmente o “porra” que soou tão descompromissado, tão belamente conectado a situação. O ambiente, a goma de mascar, um novo cigarro. Tudo tornou-se encaixado. Tudo magicamente imperfeito, ordinário.
            O pai pediu que não fizesse mais aquilo. Não daria futuro. Podia ser até que virasse maricas. Ou então endoidasse de vez. E o fez prometer que não mostraria a mais ninguém.
            Próximo dos vinte anos, o pai do escritor é solto. Volta para casa mais gordo, mais pálido, com respiração ofegante. Põe o mundo do escritor em desordem, que lamenta não mais poder ir ao presídio. Ele gostava daquele lugar. Em casa, um inferno reina a partir de então. Sua mãe bêbada quase todos os dias. Seu pai a espancando com ira. Os dois fudendo como amantes apaixonados. O escritor percebe que os gemidos de sua mãe, enquanto cavalga sobre o pai, assemelha-se muito aos gritos que dá, quando ele acerta um murro bem no meio da cara dela. Eles se merecem, conclui.
            Uma promessa de trabalho, um escritório de contabilidade, o tira do interior e o coloca na cidade grande. Mesmo odiando a racionalidade dos números, ele os abraça para alcançar a liberdade. Vai embora num dia que mal havia amanhecido. Nunca mais volta.

Num dia de chuva (sempre chove em dias assim) você me disse secamente que era o fim para nós dois. Não houve grandes justificativas. Você foi direta. Você falou. Eu me calei. Nunca fui bom em diálogos. Apesar de que depois, a refletir, eu sempre encontrava as palavras certas para dizer, só que tarde demais. Então eu colocava essas palavras no papel. Você disse que se envolvera com outro homem. Um estrangeiro. Ele a levaria para seu vinhedo na Argentina. Pediu que eu entendesse. Como se me restasse outra opção! Você estava decidida. Dava para enxergar claramente em seus olhos.
Antes de deixar minha casa pela última vez, eu disse que seus lenços floridos iriam combinar muito bem com as uvas, em qualquer estação.
            Às vezes queria uma morte pacata. Simplesmente dormir e não acordar mais. Simples. Fácil. Rápido. Sem dor. Às vezes também queria um estardalhaço ao morrer. Uma notícia no jornal. Meu nome a compor a relação de vítimas fatais. O país inteiro choraria por mim. Não morreria só.
Deixo cair a caneta sobre o papel. Bebo mais um pouco do café (já nem tão quente a essa altura) e tento olhar, através da janela, para o mais longe que meus olhos podem avistar. O infinito. Será no infinito a moradia de Deus?

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Diário da depressão

Café.
Quem dera a vida fosse como café.
Quente. Excitante. Aconchegante.
Cheiro de paz e alívio que concentra a mente.
Com uma caneca de café fumegante, me debruço sobre a janela.
Hoje tenho coragem para apreciar a paisagem da cidade de pedra.
Ainda que o que vejo não me transporte para um lugar onde queira ficar.
É noite. Ouço o silêncio da morte. Invejo todas as outras vidas que a essa hora estão comemorando as conquistas e prazeres de um dia. Uma multidão de gente faz uma multidão de planos. Enquanto me fixo num só lugar, remoendo passados, o mundo segue. Para onde?
O amor acaba. A vida segue em precipício.
Ouço latidos de cães. Uivos que mais se assemelham a prantos.
Não sei se os cães apenas latem - numa conversa que só eles entendem - ou simplesmente respondem com sofreguidão meus lamentos.
Eu e os cães da noite.
Uma diatribe esquizofrênica.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Diário da depressão

Custo a me levantar da cama, depois de horas acordado sobre o grosso edredom que ajuda a escurecer ainda mais o quarto. Só de cueca, vou até à cozinha. Bebo um copo de água da torneira. Morna. Não me incomodo. Me apoio na pia, fecho os olhos. Sinto-me zonzo. Dormente. Penso em como será o dia. Em como serão as horas. Minutos. Segundos. Instantes sem a vida que outrora foi minha. 
Sem você.
A vida está sendo muito mais difícil sem você.
Tento ao menos tomar um banho. E consigo. O tempo se arrasta um pouco mais enquanto a mente tenta se livrar da dor invasiva. Tento não pensar em nada. Você continua a pulsar em meu peito. Dolorido. Como pude me permitir apaixonar? 
Mais um amor impossível numa contagem desumana para qualquer coração humano.
O mais novo amor impossível sempre o remeterá ao mesmo sofrimento do primeiro.
Nunca esquecerei quando, aos 15 anos, quase morri de tanta amar.
O amor não deveria nos machucar tanto.
Fecho o chuveiro. Deixo o corpo se arrepiar de frio. Penso ser essa a sensação salvadora. Sentir algo real em meu corpo talvez possa desviar a dor abstrata em meu peito. Visto uma roupa simples. Aliás uma roupa que já venho vestindo há dias. Tem cheiro ruim. Suor. Azedo. Meu cheiro está ruim. 
Coloco um pouco de água no  fogo pra ferver. Um café irá me fazer bem. Minha mãe sempre me serve um café na intenção de me fazer bem. Penso no amor dela. Quero colo. Ela está longe. Estou sozinho neste apartamento sombrio. Ninguém disposto a ouvir minhas lamúrias. 
Bebo o café. Volto para a cama. Cubro meu rosto com o grosso edredom. Desejo apenas que o dia seja mais curto, que a vida seja mais curta.