“Quando poderei dormir?”, perguntou a voz cansada. Bocejou num esforço. A
ideia persistente de tentar convencer-se de que morrer seria para sempre um
sono profundo, sem sonhos, sem pesadelos, sem desordens. Apenas um apagar
sereno.
“Tem sono?” O anjo analista levou a
mão à boca. Quase a imitar o gesto incontrolável do bocejo, resistiu
bravamente.
“Ainda não.” A voz embargada saiu em
tom de pura decepção.
“Por que quer tanto dormir?”
“Em minhas fantasias, a morte seria
a única maneira de vencer a insônia que tem me devastado o ser.”
“Há quanto tempo não dorme?”
O homem levantou os ombros. Ao anjo
analista deu a impressão de ter visto aumentarem no rosto do suicida marcas de
um profundo cansaço. Abaixo dos olhos havia a presença de grandes bolsas
arroxeadas e, ao redor, rugas que mais pareciam cortes que cicatrizaram,
deixando irreparáveis defeitos.
“Impossível calcular o tempo que não
durmo. Quer dizer, não completamente. Nos últimos anos tenho tido leves e
atormentados cochilos.”
“Pode dizer o motivo? Tem condições
de relatar a origem da fuga do sono?”
“Não.”
(Fechou os olhos. Deixou a cabeça
pender para trás o máximo que pôde. Minutos depois, abriu os olhos novamente.
Mas a voz que ecoou na minúscula sala era a de um homem entregue ao desespero.)
“A essa hora já não deveria estar
dormindo? Que merda de falatório é esse? Não me diga que não morri! Estou em
coma num hospital? É isso? Você faz parte de um sonho, de uma alucinação? Será
que ao invés de morrer, sucumbi à insanidade? Também, depois de tanto tempo sem
dormir... Eu sabia que não aguentaria mais essa porra de ficar acordado. Nos
últimos dias estava se tornando insuportável.”
“Não é nada disso. Você está morto.
Eu garanto.”
“E por que ainda continuo evocando
um sono que não vem?”
“Precisa antes depor a respeito de
sua vida.”
“Depois dormirei?”
“Tudo a seu tempo.”
“Eu só preciso dormir. Só isso.”
(O homem chorou. Misturou lágrimas à
saliva que escorria de sua boca. O anjo analista não interferiu no processo de
exteriorização da dor.)
“A morte é isso?”
“Defina.”
“A morte é relembrar as minúcias de
toda uma vida?”
“O que gostaria que fosse?”
“Uma noite de sono.”
“Lamento decepcioná-lo. A morte
sempre foge do imaginário restrito dos homens.”
(Num espaço curto para devaneio
inapropriado – ele era o analista, portanto era justa a permissão para
ausentar-se – o anjo pensou nos romancistas. Esses sim tinham imaginações quase
perfeitas a respeito da finitude. Mesmo assim nenhum deles acertou quanto ao
que de fato era reservado após o morrer. Voltou sua atenção para a pergunta que
lhe era dirigida.)
“É só isso que pode dizer?”
“Antes que eu vá adiante, preciso
que você fale.”
“Falar o que?”
“Fale mais sobre sua insônia.”
“Se quer sabe quando começou ou o
que levou ao surgimento, eu sinto muito. Não posso mais definir com tanta
clareza o início da instalação desse inferno.”
(Uma nova pausa permeada de
silêncios)
“Apagar a luz e deitar sobre a cama
era o instante de maior ansiedade. Eu sabia que não iria dormir. Mesmo assim
ainda sobravam resquícios de esperança. Algo talvez me fizesse relaxar sob o
efeito anestesiante do sono. Mas nada acontecia. A insônia é um alimento
recheado de passados. Eu assim a defino depois de encará-la por muitas noites
seguidas. Fechava meus olhos. Fixava-me na simples ideia de dormir, mas sem que
pudesse dominar ou exercer qualquer resistência, eu me via atolado numa rede de
pensamentos. Muitos pensamentos. O passado me atormentava. Começava com coisas
de poucos momentos atrás: um e-mail lido, uma imagem na internet, algo que
chamou a atenção no noticiário. Coisas recentes. Depois era a solidão em que me
encontrava, meu último aniversário, a festa de confraternização natalina do
trabalho, lembranças com meus pais quando ainda morava com eles na juventude,
minha infância afogada em pequenas alegrias. Enfim, regressava totalmente. Às
vezes ficava horas tentando recordar os momentos íntimos que tive com minha mãe
quando, por nove meses, me mantive mergulhado na barriga dela. Loucura isso.
Junto com o passado, os mortos também vinham me visitar. Amigos, parentes que
morreram das mais diferentes formas: câncer, atropelamento, infarto. E como uma
coisa puxa a outra, eu me perdia em questionamentos do tipo: por que continuo
vivo? Onde estão essas pessoas que morreram? Será que tenho uma missão a
cumprir? Qual a sorte que determina nosso tempo de vida?
Eu percorria todas as posições
possíveis na cama. Rolava de um lado a outro. Virava de barriga pra cima. Abria
os olhos. Encarava o teto. Fechava os olhos novamente. Colocava-me de lado.
Dobrava as duas pernas junto ao peito. Cerrava os olhos com força. Por segundos
eu acreditava estar dormindo. Um leve cochilo. Raso. Porém essa breve pausa era
carregada por pesadelos estranhos, sem muito sentido. Assustado eu acordava de
novo. Abria os olhos com espanto. Olhava no relógio à cabeceira da cama: cinco
minutos haviam se passado. Apenas cinco minutos. Ainda de lado, esticava uma das
pernas e mantinha a outra dobrada. Depois invertia. Esticava uma e dobrava a
outra. Fechava os olhos que ardiam. Essa ardência eu achava que era o início do
sono. Então me animava. Virava para o outro lado, me cobria com o grosso
edredom até a altura do pescoço. Eu tinha uma boa cama, um colchão ortopédico
que não me feria a coluna, um ar-condicionado que sempre me lembrava a infância
na região serrana, lençóis que ainda traziam o cheiro do amaciante perfumado:
tudo era um convite a uma boa noite de sono e de sonhos. Mas de nada adiantava.
Só o que eu tinha era uma noite de insônia e pesadelos, pois o pouco que
conseguia era um sono raso, superficial, onde abundavam a sensação de morte
iminente e os fantasmas sem rosto.
Horas depois, mesmo com o
ar-condicionado trabalhando em sua potência máxima, eu sentia calor. Jogava o
edredom para o lado. Voltava a encarar o teto escuro. Respirava profundamente,
irritado com meu estado deplorável. Levantava, ia até a geladeira, bebia um
copo de água, abria a janela. Algumas vezes chorei a contemplar a madrugada
silenciosa, vista do meu apartamento, no oitavo andar de um prédio localizado
no centro da cidade. Parecia que àquela hora toda a cidade dormia, menos eu.
Para onde havia fugido a minha capacidade de dormir? Por que estava sendo
castigado? Isso se repetia todas as noites. Próximo do horário do despertador
apitar, eu já estava de olhos abertos com o estômago a queimar como se pegasse
fogo, minha cabeça latejando e dores nas pernas, dando a impressão de que andei
durante as seis horas anteriores.”
“Chegou a procurar ajuda médica?”
“Fui a especialistas, terapeutas.
Seguia os conselhos à risca. Mandaram que eu diminuísse o café. Poderia beber,
mas depois das seis da tarde ficaria expressamente proibido o consumo da bebida
que, segundo os especialistas, deixava as pessoas mais alertas. Durante o dia,
para me manter acordado, me enveredava por uma overdose de café. Pouco efeito
surgia. Eu era como um zumbi. Quase não ouvia as conversas ao redor. Me sentia
inserido num mundo de sonhos, de pouca nitidez, lento, opaco. Sendo assim,
depois das seis, só me alimentava de água e frutas. Porque um outro conselho
foi comer pouco à noite. Um dos médicos – dos vários que consultei – me
receitou que, antes de dormir, tomasse um banho morno por pelo menos quinze
minutos; que em seguida bebesse um chá de erva cidreira, no mínimo uma xícara.
Na primeira vez que segui seus conselhos, cheguei em casa em pura empolgação.
Eu tinha certeza que naquela noite, se cumprisse todas as recomendações, eu
ganharia um prêmio por minha disciplina. Tomei banho, fiz o chá, não liguei o
computador, fui cedo para a cama, mas só o que recebi foi uma noite completa de
pura insônia. Nem os cochilos me visitaram. Um desastre total.
Depois uma amiga me recomendou que
praticasse um esporte, pois, se cansasse meu corpo, ele fatalmente apagaria
quando fosse para a cama. Como nunca fui dado a esportes, resolvi me inscrever
num clube próximo a minha casa, o qual possuía uma piscina térmica de vinte e
cinco metros de extensão, onde poderia praticar natação, um esporte pelo qual
sempre tive certa admiração. Por duas semanas nadei todas as noites após o
trabalho. Não dormi por conta disso. Ao contrário, só ganhei um cansaço extra.
Pela manhã, meu corpo não queria levantar, minhas pernas pesavam como se
tivessem bolas de ferro amarradas nos calcanhares. Eu me arrastava até o
banheiro. Minha imagem no espelho estava ficando cada dia mais deplorável. Eu
me transformava num bicho acuado numa jaula. Eu tinha fome e sede de sono. Isso
estava me sendo negado. Ao redor dos meus olhos, uma bolsa arroxeada ganhava
mais cor. Meus olhos vermelhos ardiam. Só o que eles queriam era se manter
fechados. O sono que me era tirado à noite me perseguia por todo o dia. Percebi
que nas últimas semanas os dias estavam se tornando longos demais, assim como
as noites.”
(silêncio)
“Por isso se matou?”
“Eu só quero dormir. Cheguei a fazer
uso de medicamentos também. Eles fizeram com que eu dormisse por algumas
noites. Mas a sensação era de chegar até a borda do sono. O que eu queria de
fato era mergulhar profundamente, sentir-me revigorado pela manhã. Mas isso não
aconteceu. Nunca mais. Então abandonei os medicamentos e os substituí pelo
álcool. Mais especificamente o vinho. Comecei com duas taças por noite.
Descobri que o vinho era eficaz. Ficava mais relaxado, mais leve, mais tonto.
Com a cabeça a girar, eu desabava na cama. Nos primeiros dias representou um
alívio. Aumentei a dose no mês seguinte. Mas depois de um tempo, uma garrafa de
vinho por noite só me perturbou ainda mais. Ao invés de dormir, eu passei a
sofrer uma espécie de alucinação. Via vultos. Um medo assustador se apossou de
mim, o que me impedia de fechar a porta do quarto. Pela manhã, a dor de cabeça
aumentou, meu fígado reclamava com força. Meu estômago queimava intensamente e
eu me sentia muito mais cansado. Só me restou o desejo de morrer.”
O homem hesita. E por fim completa.
“Para dormir.”
Com olhares submissos – que se
preparavam para efetuar um pedido – o suicida encarou o anjo analista.
“Poderei dormir agora?”