Silêncio. Tudo se resumia num perturbador e completo
silêncio. Nada, exterior ao seu corpo, fazia mais sentido e não conseguia
pensar na palavra “futuro”. Depois de todos os acontecimentos em sua vida, não
era mais necessário preocupar-se com ela.
Catharina
França, hoje com trinta anos, encontrava-se com os olhares perdidos ao longe,
aprisionada solitariamente numa cela com menos de oito metros quadrados,
pensando como num rápido filme em todas as coisas boas e ruins que outrora
sucederam e como pôde se deixar enlouquecer, no sentido mais amplo da palavra,
com os amores, traições, desafetos e uma grande dúvida sobre vingança. A cela
onde estava era suja, com suas paredes mofadas pela umidade e com alguns
rabiscos e nomes, levando-a ao extremo da claustrofobia, com a impressão de ser
esprimida por aquele pequeno cubo. No seu interior, havia apenas um colchonete
estendido sobre o chão e um pequeno e fino cobertor para que pudesse se cobrir.
Lá fora, o dia era claro e quente, deduzido pelos poucos raios de sol que
penetravam através de um pequeno buraco por cima de sua cabeça, mas o frio que
sentia, em virtude de uma febre alta, era de congelar fazendo seus lábios tremerem
e seus dentes rangerem, produzindo um pequeno som que, adicionado a um fraco
gemido, resultado de um inexplicável cansaço, acabava por eliminar em parte o
silêncio caótico do lugar.
Já fazia duas semanas desde o seu encarceramento
e estava difícil de tirar aquele dia da memória. O dia em que, sem saber até o
momento a cronologia e a veracidade dos fatos, assassinou o seu grande amor ou
aquele que um dia ela o considerou ser. A única coisa da qual consegue se
recordar é do barulho de estrondosos e ensurdecedores tiros. Catharina tinha a certeza
de naquela hora estar segurando uma arma, mas não se lembrava como fizera para apertar
o gatilho e os tiros, então, serem disparados. Catharina sabia também que era
perfeitamente capaz de matar. Sua memória falhava e se tornava penoso demais
tentar encaixar os fatos.
Seu
julgamento se procederia dentro de duas semanas e, se considerada culpada,
seria submetida a uma pena mínima de cinco anos de prisão, porém esse fator não
a preocupava tanto. Num estado de profunda depressão, ela não tinha mais
motivação para recomeçar uma “nova vida”.
Seu rosto, envelhecido como se estivesse adiantado no tempo e seus olhos
fundos e arroxeados ao redor registravam horas de incessante pranto. Sua beleza
que havia encantado os palcos e as telas do Brasil, seu sorriso alegre e seu
corpo esteticamente correto, capaz de deixar qualquer homem nocauteado, davam a
impressão de terem desaparecido para sempre, entrando numa fase de desgaste
físico irreversível. O dinheiro e a fama talvez fossem as premissas e a grande
causa de sua infelicidade. Era uma pena que no Brasil ainda não existisse a
pena de morte, pensou ela. Talvez fosse melhor assim.
O
país havia parado devido a esse crime, um crime inexplicável diante do povo. A
imprensa estaria reunida e espremida naquela plateia, com seus gravadores e
máquinas fotográficas prontos para o julgamento registrando tudo e não deixando
que nada se perdesse. Seria a sua
primeira aparição perante o público e os jornalistas. Já havia se passado
quatro meses desde a sua declaração em rede nacional de televisão que estava
abandonando a carreira artística para se dedicar somente à família. Mesmo
assim, os brasileiros compreenderam tal atitude e continuaram a amá-la do mesmo
modo. Com esse crime, ela voltou a ser notícia, só que agora ela não
interpretava nenhum de seus personagens, enfrentava apenas a vida real.
Catharina tinha apenas esperanças em relação à
presença de algumas pessoas. Talvez assim não se sentiria tão sozinha. Ansiava
pela presença mais que necessária de quatro homens, quatro amigos que viraram
verdadeiros estranhos: Oscar Venturini - o homem que atiçou a sua ambição;
Faustino Denegri - o homem que fertilizou a sua ambição; João Francisco, seu
pai – o homem que a impulsionou para a maturidade, tornando-a uma mulher de
verdade e Robert Júnior, o único homem que amou em toda a vida. A presença de
Oscar era importante para ajudá-la a sustentar as forças e concretizar um
pedido de desculpas em dívida há muito tempo. Mas Faustino era o único que
podia fazer algo. Sua forte influência com políticos e a mídia o tornava uma
pessoa com plenos poderes para tal – era o homem que havia lhe proporcionado
seus mais ricos desejos. Seu pai só seria de grande valia se pudesse defendê-la
no tribunal, o que não ocorreria, pois indicara um outro advogado para lutar
por sua absolvição. Robert era o único que tinha alguma chance de aparecer, mas
o havia rejeitado por tantas vezes que deveria ter entendido o recado para não
continuar a persegui-la. Portanto, o mais provável, infelizmente, era a
ausência de todos eles e Catharina, melhor do que ninguém, compreendia as
razões dessa ausência. Fora amante, filha ingrata e mulher insensível e os usou
como alavanca para conseguir o que queria e os descartou com extrema facilidade,
deixando rancores e desdém nos seus corações. Sentia vergonha dela mesma. Além
do mais, um deles estava morto e era por isso que estava ali.
Naquela tarde, Catharina não
conseguia nem ao menos rezar. A fé havia sido extinta de seu corpo e de sua
mente e Deus ainda permanecia como um mistério. Cerrou os olhos sentindo um
suave tremor de seu corpo e, pela primeira vez, sentiu seus batimentos
cardíacos acelerarem por causa do medo. O mundo que um dia a fez sentir
excitamento pela vida, a fazia sentir pena de si mesma.
Mal havia fechado os olhos e
pôde ouvir alguns passos no corredor daquele presídio. De repente o barulho sumiu e teve certeza de que
alguém estava em frente a sua cela, parado e a observando, com a respiração
ofegante. Essa certeza a fez abrir os olhos, mas sua visão estava um pouco
deturpada, tendo dificuldades para enxergar qualquer coisa diante de si. A
princípio, viu dois homens. Não precisou de muito esforço para reconhecer um
deles. Seu uniforme de policial denunciava ser apenas um dos guardas a vigiá-la
permanentemente como se fosse uma assassina perigosa, pronta para fugir assim
que tivesse uma chance. O outro não conseguia reconhecer de jeito nenhum. Ainda
deitada, o rosto do desconhecido era coberto por uma sombra que só dificultava
a tarefa de ser reconhecido. Era inútil. Por mais que forçasse sua visão, o que
fazia com que sua cabeça latejasse ainda mais de dor, não chegava a nenhuma
conclusão.
Foi então que Catharina pôde
ouvir a voz do guarda que lhe pedia, de maneira educada, para levantar-se, pois
tinha uma visita importante. Ela então ergueu seu corpo com certa dificuldade
até ficar de pé e, saindo do fundo da cela, se aproximou das grades que a
separavam da liberdade do mundo lá fora. Encostou sua cabeça nas barras de
ferro para olhar de perto aquele homem parado a sua frente e que permanecia em silêncio. Catharina não o conhecia. Não agora.
Um instante depois, a cela
se abriu e o estranho entrou, pedindo licença para se sentar numa cadeira alojada
lá dentro. Acomodou-se, tirou de dentro de uma pasta uns papéis e pediu que
Catharina o escutasse, pois queria contar-lhe algo que seria útil quando
começasse a batalha no tribunal.
***