terça-feira, 22 de outubro de 2013

Primeiras páginas do livro "RETORNO AO PÓ"


          Silêncio. Tudo se resumia num perturbador e completo silêncio. Nada, exterior ao seu corpo, fazia mais sentido e não conseguia pensar na palavra “futuro”. Depois de todos os acontecimentos em sua vida, não era mais necessário preocupar-se com ela.
          Catharina França, hoje com trinta anos, encontrava-se com os olhares perdidos ao longe, aprisionada solitariamente numa cela com menos de oito metros quadrados, pensando como num rápido filme em todas as coisas boas e ruins que outrora sucederam e como pôde se deixar enlouquecer, no sentido mais amplo da palavra, com os amores, traições, desafetos e uma grande dúvida sobre vingança. A cela onde estava era suja, com suas paredes mofadas pela umidade e com alguns rabiscos e nomes, levando-a ao extremo da claustrofobia, com a impressão de ser esprimida por aquele pequeno cubo. No seu interior, havia apenas um colchonete estendido sobre o chão e um pequeno e fino cobertor para que pudesse se cobrir. Lá fora, o dia era claro e quente, deduzido pelos poucos raios de sol que penetravam através de um pequeno buraco por cima de sua cabeça, mas o frio que sentia, em virtude de uma febre alta, era de congelar fazendo seus lábios tremerem e seus dentes rangerem, produzindo um pequeno som que, adicionado a um fraco gemido, resultado de um inexplicável cansaço, acabava por eliminar em parte o silêncio caótico do lugar.
            Já  fazia duas semanas desde o seu encarceramento e estava difícil de tirar aquele dia da memória. O dia em que, sem saber até o momento a cronologia e a veracidade dos fatos, assassinou o seu grande amor ou aquele que um dia ela o considerou ser. A única coisa da qual consegue se recordar é do barulho de estrondosos e ensurdecedores tiros. Catharina tinha a certeza de naquela hora estar segurando uma arma, mas não se lembrava como fizera para apertar o gatilho e os tiros, então, serem disparados. Catharina sabia também que era perfeitamente capaz de matar. Sua memória falhava e se tornava penoso demais tentar encaixar os fatos.
            Seu julgamento se procederia dentro de duas semanas e, se considerada culpada, seria submetida a uma pena mínima de cinco anos de prisão, porém esse fator não a preocupava tanto. Num estado de profunda depressão, ela não tinha mais motivação para recomeçar uma “nova vida”.  Seu rosto, envelhecido como se estivesse adiantado no tempo e seus olhos fundos e arroxeados ao redor registravam horas de incessante pranto. Sua beleza que havia encantado os palcos e as telas do Brasil, seu sorriso alegre e seu corpo esteticamente correto, capaz de deixar qualquer homem nocauteado, davam a impressão de terem desaparecido para sempre, entrando numa fase de desgaste físico irreversível. O dinheiro e a fama talvez fossem as premissas e a grande causa de sua infelicidade. Era uma pena que no Brasil ainda não existisse a pena de morte, pensou ela. Talvez fosse melhor assim.
            O país havia parado devido a esse crime, um crime inexplicável diante do povo. A imprensa estaria reunida e espremida naquela plateia, com seus gravadores e máquinas fotográficas prontos para o julgamento registrando tudo e não deixando que nada se perdesse.  Seria a sua primeira aparição perante o público e os jornalistas. Já havia se passado quatro meses desde a sua declaração em rede nacional de televisão que estava abandonando a carreira artística para se dedicar somente à família. Mesmo assim, os brasileiros compreenderam tal atitude e continuaram a amá-la do mesmo modo. Com esse crime, ela voltou a ser notícia, só que agora ela não interpretava nenhum de seus personagens, enfrentava apenas a vida real.
 Catharina tinha apenas esperanças em relação à presença de algumas pessoas. Talvez assim não se sentiria tão sozinha. Ansiava pela presença mais que necessária de quatro homens, quatro amigos que viraram verdadeiros estranhos: Oscar Venturini - o homem que atiçou a sua ambição; Faustino Denegri - o homem que fertilizou a sua ambição; João Francisco, seu pai – o homem que a impulsionou para a maturidade, tornando-a uma mulher de verdade e Robert Júnior, o único homem que amou em toda a vida. A presença de Oscar era importante para ajudá-la a sustentar as forças e concretizar um pedido de desculpas em dívida há muito tempo. Mas Faustino era o único que podia fazer algo. Sua forte influência com políticos e a mídia o tornava uma pessoa com plenos poderes para tal – era o homem que havia lhe proporcionado seus mais ricos desejos. Seu pai só seria de grande valia se pudesse defendê-la no tribunal, o que não ocorreria, pois indicara um outro advogado para lutar por sua absolvição. Robert era o único que tinha alguma chance de aparecer, mas o havia rejeitado por tantas vezes que deveria ter entendido o recado para não continuar a persegui-la. Portanto, o mais provável, infelizmente, era a ausência de todos eles e Catharina, melhor do que ninguém, compreendia as razões dessa ausência. Fora amante, filha ingrata e mulher insensível e os usou como alavanca para conseguir o que queria e os descartou com extrema facilidade, deixando rancores e desdém nos seus corações. Sentia vergonha dela mesma. Além do mais, um deles estava morto e era por isso que estava ali.
Naquela tarde, Catharina não conseguia nem ao menos rezar. A fé havia sido extinta de seu corpo e de sua mente e Deus ainda permanecia como um mistério. Cerrou os olhos sentindo um suave tremor de seu corpo e, pela primeira vez, sentiu seus batimentos cardíacos acelerarem por causa do medo. O mundo que um dia a fez sentir excitamento pela vida, a fazia sentir pena de si mesma.
Mal havia fechado os olhos e pôde ouvir alguns passos no corredor daquele presídio. De          repente o barulho sumiu e teve certeza de que alguém estava em frente a sua cela, parado e a observando, com a respiração ofegante. Essa certeza a fez abrir os olhos, mas sua visão estava um pouco deturpada, tendo dificuldades para enxergar qualquer coisa diante de si. A princípio, viu dois homens. Não precisou de muito esforço para reconhecer um deles. Seu uniforme de policial denunciava ser apenas um dos guardas a vigiá-la permanentemente como se fosse uma assassina perigosa, pronta para fugir assim que tivesse uma chance. O outro não conseguia reconhecer de jeito nenhum. Ainda deitada, o rosto do desconhecido era coberto por uma sombra que só dificultava a tarefa de ser reconhecido. Era inútil. Por mais que forçasse sua visão, o que fazia com que sua cabeça latejasse ainda mais de dor, não chegava a nenhuma conclusão.
Foi então que Catharina pôde ouvir a voz do guarda que lhe pedia, de maneira educada, para levantar-se, pois tinha uma visita importante. Ela então ergueu seu corpo com certa dificuldade até ficar de pé e, saindo do fundo da cela, se aproximou das grades que a separavam da liberdade do mundo lá fora. Encostou sua cabeça nas barras de ferro para olhar de perto aquele homem parado a sua frente e que permanecia em silêncio. Catharina não o conhecia. Não agora.
Um instante depois, a cela se abriu e o estranho entrou, pedindo licença para se sentar numa cadeira alojada lá dentro. Acomodou-se, tirou de dentro de uma pasta uns papéis e pediu que Catharina o escutasse, pois queria contar-lhe algo que seria útil quando começasse a batalha no tribunal.
***

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Terapia das almas suicidas


Numa determinada região do país, um Pastor, a crer no fim do mundo, convence um número expressivo de pessoas a cometerem suicídio coletivo após a pregação formal, exortação de palavras de melhores dias e abandono definitivo desta vida. Diz que o mundo está perto do fim. Nada mais sobrará. Todos se matam com uma bebida de origem desconhecida, mas de gosto amargo, cortante, que queima por dentro quando se espalha pelo estômago.
            Ao chegarem do outro lado, as almas têm de esperar numa antessala de cor acinzentada, fria, com ventos brandos, incessantes. Estão sentadas a curta distância umas das outras. Cabisbaixas, não possuem nenhuma paisagem onde fixar o olhar. Nenhuma definição existe para os minutos seguintes. Isso se qualquer medição do tempo houver. Tudo parece parado em alguma espécie de torpor. Sem som, sem movimento, sem respiração, sem cor, pouca luz.
      Cada alma terá de passar por um interrogatório. Devido ao suicídio, não poderão adentrar imediatamente o paraíso supremo onde elas desejam a todo custo descansar. Uma figura de palidez mórbida entra e avisa com voz baixa que elas terão de conceder esclarecimentos ao anjo analista. Uma explicação será dada. Deverão prestar um depoimento devendo ser o mais sincero possível, ainda que nenhuma garantia haja de conseguirem absolvição.
          Os depoimentos selecionados para este livro pertencem às almas isentas de discurso religioso. O fanatismo proclamado pela maioria maciça dos demais suicidas foi ocultado para não tornar este romance uma narrativa de falas repetitivas e tediosas. 

A insônia é um alimento recheado de passados (livro TERAPIA DAS ALMAS SUICIDAS)


“Quando poderei dormir?”, perguntou a voz cansada. Bocejou num esforço. A ideia persistente de tentar convencer-se de que morrer seria para sempre um sono profundo, sem sonhos, sem pesadelos, sem desordens. Apenas um apagar sereno.
            “Tem sono?” O anjo analista levou a mão à boca. Quase a imitar o gesto incontrolável do bocejo, resistiu bravamente.
            “Ainda não.” A voz embargada saiu em tom de pura decepção.
            “Por que quer tanto dormir?”
            “Em minhas fantasias, a morte seria a única maneira de vencer a insônia que tem me devastado o ser.”
            “Há quanto tempo não dorme?”
            O homem levantou os ombros. Ao anjo analista deu a impressão de ter visto aumentarem no rosto do suicida marcas de um profundo cansaço. Abaixo dos olhos havia a presença de grandes bolsas arroxeadas e, ao redor, rugas que mais pareciam cortes que cicatrizaram, deixando irreparáveis defeitos.
            “Impossível calcular o tempo que não durmo. Quer dizer, não completamente. Nos últimos anos tenho tido leves e atormentados cochilos.”
            “Pode dizer o motivo? Tem condições de relatar a origem da fuga do sono?”
            “Não.”
            (Fechou os olhos. Deixou a cabeça pender para trás o máximo que pôde. Minutos depois, abriu os olhos novamente. Mas a voz que ecoou na minúscula sala era a de um homem entregue ao desespero.)
            “A essa hora já não deveria estar dormindo? Que merda de falatório é esse? Não me diga que não morri! Estou em coma num hospital? É isso? Você faz parte de um sonho, de uma alucinação? Será que ao invés de morrer, sucumbi à insanidade? Também, depois de tanto tempo sem dormir... Eu sabia que não aguentaria mais essa porra de ficar acordado. Nos últimos dias estava se tornando insuportável.”
            “Não é nada disso. Você está morto. Eu garanto.”
            “E por que ainda continuo evocando um sono que não vem?”
            “Precisa antes depor a respeito de sua vida.”
            “Depois dormirei?”
            “Tudo a seu tempo.”
            “Eu só preciso dormir. Só isso.”
            (O homem chorou. Misturou lágrimas à saliva que escorria de sua boca. O anjo analista não interferiu no processo de exteriorização da dor.) 
            “A morte é isso?”
            “Defina.”
            “A morte é relembrar as minúcias de toda uma vida?”
            “O que gostaria que fosse?”
            “Uma noite de sono.”
            “Lamento decepcioná-lo. A morte sempre foge do imaginário restrito dos homens.”
            (Num espaço curto para devaneio inapropriado – ele era o analista, portanto era justa a permissão para ausentar-se – o anjo pensou nos romancistas. Esses sim tinham imaginações quase perfeitas a respeito da finitude. Mesmo assim nenhum deles acertou quanto ao que de fato era reservado após o morrer. Voltou sua atenção para a pergunta que lhe era dirigida.)
            “É só isso que pode dizer?”
            “Antes que eu vá adiante, preciso que você fale.”
            “Falar o que?”
            “Fale mais sobre sua insônia.”
            “Se quer sabe quando começou ou o que levou ao surgimento, eu sinto muito. Não posso mais definir com tanta clareza o início da instalação desse inferno.”
            (Uma nova pausa permeada de silêncios)
            “Apagar a luz e deitar sobre a cama era o instante de maior ansiedade. Eu sabia que não iria dormir. Mesmo assim ainda sobravam resquícios de esperança. Algo talvez me fizesse relaxar sob o efeito anestesiante do sono. Mas nada acontecia. A insônia é um alimento recheado de passados. Eu assim a defino depois de encará-la por muitas noites seguidas. Fechava meus olhos. Fixava-me na simples ideia de dormir, mas sem que pudesse dominar ou exercer qualquer resistência, eu me via atolado numa rede de pensamentos. Muitos pensamentos. O passado me atormentava. Começava com coisas de poucos momentos atrás: um e-mail lido, uma imagem na internet, algo que chamou a atenção no noticiário. Coisas recentes. Depois era a solidão em que me encontrava, meu último aniversário, a festa de confraternização natalina do trabalho, lembranças com meus pais quando ainda morava com eles na juventude, minha infância afogada em pequenas alegrias. Enfim, regressava totalmente. Às vezes ficava horas tentando recordar os momentos íntimos que tive com minha mãe quando, por nove meses, me mantive mergulhado na barriga dela. Loucura isso. Junto com o passado, os mortos também vinham me visitar. Amigos, parentes que morreram das mais diferentes formas: câncer, atropelamento, infarto. E como uma coisa puxa a outra, eu me perdia em questionamentos do tipo: por que continuo vivo? Onde estão essas pessoas que morreram? Será que tenho uma missão a cumprir? Qual a sorte que determina nosso tempo de vida?
            Eu percorria todas as posições possíveis na cama. Rolava de um lado a outro. Virava de barriga pra cima. Abria os olhos. Encarava o teto. Fechava os olhos novamente. Colocava-me de lado. Dobrava as duas pernas junto ao peito. Cerrava os olhos com força. Por segundos eu acreditava estar dormindo. Um leve cochilo. Raso. Porém essa breve pausa era carregada por pesadelos estranhos, sem muito sentido. Assustado eu acordava de novo. Abria os olhos com espanto. Olhava no relógio à cabeceira da cama: cinco minutos haviam se passado. Apenas cinco minutos. Ainda de lado, esticava uma das pernas e mantinha a outra dobrada. Depois invertia. Esticava uma e dobrava a outra. Fechava os olhos que ardiam. Essa ardência eu achava que era o início do sono. Então me animava. Virava para o outro lado, me cobria com o grosso edredom até a altura do pescoço. Eu tinha uma boa cama, um colchão ortopédico que não me feria a coluna, um ar-condicionado que sempre me lembrava a infância na região serrana, lençóis que ainda traziam o cheiro do amaciante perfumado: tudo era um convite a uma boa noite de sono e de sonhos. Mas de nada adiantava. Só o que eu tinha era uma noite de insônia e pesadelos, pois o pouco que conseguia era um sono raso, superficial, onde abundavam a sensação de morte iminente e os fantasmas sem rosto.
            Horas depois, mesmo com o ar-condicionado trabalhando em sua potência máxima, eu sentia calor. Jogava o edredom para o lado. Voltava a encarar o teto escuro. Respirava profundamente, irritado com meu estado deplorável. Levantava, ia até a geladeira, bebia um copo de água, abria a janela. Algumas vezes chorei a contemplar a madrugada silenciosa, vista do meu apartamento, no oitavo andar de um prédio localizado no centro da cidade. Parecia que àquela hora toda a cidade dormia, menos eu. Para onde havia fugido a minha capacidade de dormir? Por que estava sendo castigado? Isso se repetia todas as noites. Próximo do horário do despertador apitar, eu já estava de olhos abertos com o estômago a queimar como se pegasse fogo, minha cabeça latejando e dores nas pernas, dando a impressão de que andei durante as seis horas anteriores.”
            “Chegou a procurar ajuda médica?”
            “Fui a especialistas, terapeutas. Seguia os conselhos à risca. Mandaram que eu diminuísse o café. Poderia beber, mas depois das seis da tarde ficaria expressamente proibido o consumo da bebida que, segundo os especialistas, deixava as pessoas mais alertas. Durante o dia, para me manter acordado, me enveredava por uma overdose de café. Pouco efeito surgia. Eu era como um zumbi. Quase não ouvia as conversas ao redor. Me sentia inserido num mundo de sonhos, de pouca nitidez, lento, opaco. Sendo assim, depois das seis, só me alimentava de água e frutas. Porque um outro conselho foi comer pouco à noite. Um dos médicos – dos vários que consultei – me receitou que, antes de dormir, tomasse um banho morno por pelo menos quinze minutos; que em seguida bebesse um chá de erva cidreira, no mínimo uma xícara. Na primeira vez que segui seus conselhos, cheguei em casa em pura empolgação. Eu tinha certeza que naquela noite, se cumprisse todas as recomendações, eu ganharia um prêmio por minha disciplina. Tomei banho, fiz o chá, não liguei o computador, fui cedo para a cama, mas só o que recebi foi uma noite completa de pura insônia. Nem os cochilos me visitaram. Um desastre total.
            Depois uma amiga me recomendou que praticasse um esporte, pois, se cansasse meu corpo, ele fatalmente apagaria quando fosse para a cama. Como nunca fui dado a esportes, resolvi me inscrever num clube próximo a minha casa, o qual possuía uma piscina térmica de vinte e cinco metros de extensão, onde poderia praticar natação, um esporte pelo qual sempre tive certa admiração. Por duas semanas nadei todas as noites após o trabalho. Não dormi por conta disso. Ao contrário, só ganhei um cansaço extra. Pela manhã, meu corpo não queria levantar, minhas pernas pesavam como se tivessem bolas de ferro amarradas nos calcanhares. Eu me arrastava até o banheiro. Minha imagem no espelho estava ficando cada dia mais deplorável. Eu me transformava num bicho acuado numa jaula. Eu tinha fome e sede de sono. Isso estava me sendo negado. Ao redor dos meus olhos, uma bolsa arroxeada ganhava mais cor. Meus olhos vermelhos ardiam. Só o que eles queriam era se manter fechados. O sono que me era tirado à noite me perseguia por todo o dia. Percebi que nas últimas semanas os dias estavam se tornando longos demais, assim como as noites.”
            (silêncio)
            “Por isso se matou?”
            “Eu só quero dormir. Cheguei a fazer uso de medicamentos também. Eles fizeram com que eu dormisse por algumas noites. Mas a sensação era de chegar até a borda do sono. O que eu queria de fato era mergulhar profundamente, sentir-me revigorado pela manhã. Mas isso não aconteceu. Nunca mais. Então abandonei os medicamentos e os substituí pelo álcool. Mais especificamente o vinho. Comecei com duas taças por noite. Descobri que o vinho era eficaz. Ficava mais relaxado, mais leve, mais tonto. Com a cabeça a girar, eu desabava na cama. Nos primeiros dias representou um alívio. Aumentei a dose no mês seguinte. Mas depois de um tempo, uma garrafa de vinho por noite só me perturbou ainda mais. Ao invés de dormir, eu passei a sofrer uma espécie de alucinação. Via vultos. Um medo assustador se apossou de mim, o que me impedia de fechar a porta do quarto. Pela manhã, a dor de cabeça aumentou, meu fígado reclamava com força. Meu estômago queimava intensamente e eu me sentia muito mais cansado. Só me restou o desejo de morrer.”
O homem hesita. E por fim completa.
“Para dormir.”
            Com olhares submissos – que se preparavam para efetuar um pedido – o suicida encarou o anjo analista.
            “Poderei dormir agora?”

sábado, 7 de setembro de 2013

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS

Livro 37 deste ano: "Todos os cachorros são azuis", de Rodrigo de Souza Leão.
Embarcar na escrita de Rodrigo é perceber que, para além de simplesmente tecer uma história, a literatura pode representar um poço de salvação. Não me sinto tão só no mundo quando me deparo com livros e autores dessa tribo.


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Influências da vida de escritores sobre a percepção que temos de suas obras


É possível sentir-se atraído primeiro pela personalidade de um autor para só depois interessar-se por seus livros? A pergunta me faz refletir no quanto a história de vida de um determinado escritor acaba influenciando a maneira como dirigimos nosso olhar para suas obras, pautando assim nossa crítica e interferindo diretamente num processo de identificação. Isso aconteceu comigo duas vezes: com Virgínia Woolf e com Valter Hugo Mãe.

           Em 2002, sem ter lido sequer um livro de Virgínia Woolf e sem saber nada ou quase nada dessa grande escritora inglesa, eu entrei numa extinta sala de cinema de Icaraí para assistir ao aclamado e premiado filme As Horas. A ansiedade para conferir a película se devia muito mais ao diretor Stephen Daldry (que no ano anterior havia dirigido Billy Elliot, uma agradável surpresa) do que à história em si que, lido rapidamente nos jornais, verifiquei que girava em torno da vida de três mulheres em épocas e estilos distintos. Fora as atuações sempre marcantes de Meryl Streep e Julianne Moore e uma Nicole Kidman que buscava um lugar ao sol após ter se divorciado do galã Tom Cruise eu não tinha outros atrativos para encarar quase duas horas de puro drama. Vale destacar que Nicole Kidman recebeu a estatueta do Oscar por interpretar Virginia Woolf e dois anos depois arrancaria aplausos no Festival de Cannes pelo filme Dogville, numa parceria bem sucedia com Lars Von Trier. Resumindo, As Horas é um filme espetacular que recebeu nove indicações ao Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor atriz (Nicole Kidman), melhor ator coadjuvante (Ed Harris), melhor atriz coadjuvante (Julianne Moore), melhor roteiro adaptado, melhor edição, melhor figurino e melhor trilha sonora.

            O fato é que quando o filme chegou ao fim e a música de Philip Glass entoou mais forte junto com a ficha técnica, eu estava tomado por uma pressão nos ossos e no peito que me levaram a algumas lágrimas exaustivas. Em um efeito de hipnose eu ainda não conseguia identificar a que se deviam as lágrimas e o torpor. Taciturno, custei a me levantar. Um dos últimos a deixar a sala eu saí com passos trôpegos sem nenhuma vontade de voltar para casa. Eu precisava caminhar. E assim eu fiz. Por horas, sentindo-me invisível, eu caminhei pela orla da praia de Icaraí. Por fim, concluí que não era só o filme que me deixara exultante, mas sim a história de vida de Virgínia Woolf. Foi também um efeito de identificação imediata com a escritora. Não me refiro aqui a seus escritos nem muito menos a ideia de me comparar a ela, mas tão somente à personalidade melancólica de Virgínia. Na época eu tinha somente vontade de escrever, mas sentia como se me faltassem armas, competência e disciplina para sentar-me e simplesmente escrever. Eu queria escrever, mas não fazia ideia do que era dedicar-me à literatura. Dedicação à escrita e a literatura como peça fundamental de sobrevivência foi o que vi em Virgínia Woolf. Em seus aspectos técnicos – roteiro, direção, elenco, trilha sonora, montagem e edição – o filme é um primor. Mas não fosse a vida conturbada de Virgínia até o suicídio, seus momentos de devaneios para criar e escrever, o filme corria o risco de cair na vala comum destinada aos dramalhões hollywoodianos.


De repente eu queria desesperadamente conhecer e saber tudo sobre Virgínia Woolf. Comprei o livro homônimo (aparentemente infilmável) que serviu de base para a construção do roteiro. Da autoria de Michael Cunningham, foi vencedor do prêmio Pulitzer. Nos meses seguintes pesquisei bastante sobre a vida da escritora. Virgínia Woolf perdeu a mãe aos treze anos e passou a enfrentar severas crises depressivas após isso, acompanhadas de alucinações auditivas. Dizia ouvir vozes, além de incapacitantes dores de cabeça. Suicidou-se em 1941, mergulhando para a morte no Rio Ouse.

            Demorou muitos anos para que eu lesse Virgínia. E vivo me perguntando o porquê. Por que essa lentidão já que a paixão por Virgínia foi imediata. Hoje não posso afirmar com convicção, mas ouso repousar minhas reflexões sobre duas hipóteses que são coerentes. Em 2002, quando assisti ao filme, eu era muito imaturo, possuidor do desejo de ser um escritor, mas com pouco conhecimento em literatura. Até então eu gostava de ler Sidney Sheldon, Danielle Steel e Stephen King. Nada contra mas era preciso alçar voo. Ir além. Também fosse possível que eu tivesse medo de ler Virgínia por já prever de antemão que teria sérios problemas para interagir com uma escritora proclamada pelos intelectuais e pelos mais renomados críticos de literatura por ser pioneira no chamado “fluxo de consciência” e justamente por ser complexa e de difícil leitura.

           Virgínia Woolf ganhou espaço entre meus livros quando surgiu em mim uma necessidade de mudança de rumo nas leituras. Chegou junto com outros grandes autores: José Saramago, Dostoiévski, Roberto Bolaño, Philip Roth, Clarice Lispector. Li somente dois livros de Virgínia: Mrs. Daloway e O quarto de Jacob. Que ninguém se engane. É uma leitura difícil, confesso, mas que reflete exatamente quem foi essa grande mulher: uma escritora complexa, uma escrita (um tanto delirante, se me permitem dizer) que não se prende propriamente a uma trama. Terei de ler outros livros de sua autoria, não sem antes reler esse dois títulos que citei. 
   
               E é justamente nessa época que entra Valter Hugo Mãe, a quem me referi no início do texto. Aconteceu em 2011. Eu estava em êxtase naquele ano. Pela primeira vez eu havia me organizado para ir a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), algo que vinha protelando nas edições anteriores por conta dos velhos problemas de sempre: falta de dinheiro e de tempo. Consegui juntar uma grana e programei as férias para o período da festa. Eu, finalmente, conheceria Paraty e mergulharia na FLIP. Comprei ingressos para praticamente todas as mesas literárias. Valter Hugo Mãe chamou minha atenção pela ausência de letras maiúsculas em seus textos, inclusive assinava até então só utilizando minúsculas. Bastou assistir sua apresentação para que eu fosse fisgado pelo cara. Com um discurso simples, carismático, empolgante, Valter encantou a plateia. Foi aplaudido após ler uma carta que escreveu em homenagem ao Brasil.

Trecho final da carta: “... sonhei sempre em vir ao Brasil, e vim várias vezes. Faltava vir como escritor. Publicado e recebido. Pois aqui estou. A FLIP fez isso. Não esquecerei nunca. Sinto que fazem de mim um homem de ouro. Agradeço a todos muito por isso.”
Vale a pena assistir na íntegra no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=euD46SXKaOc.


Conclusão: seus livros esgotaram. Autografou por mais de duas horas. Eu fiquei um bom tempo na fila, mas valeu a pena. Valter conversou brevemente comigo, deixou que eu tirasse fotos ao seu lado e, simplesmente, me encantou. Lembro que sai à caça de todos os seus livros e li um atrás do outro: o remorso de baltazar serapião, o nosso reino, a máquina de fazer espanhóis, o apocalipse dos trabalhadores, O Filho de Mil Homens. A repetição do fato me levou de volta à Virgínia Woolf. Novamente eu me deixava envolver pela personalidade de um autor para só depois ir ao encontro de seus livros.

            A inspiração para escrever esse artigo veio depois que assisti ao filme Flores Raras, de Bruno Barreto. Nunca li nada de Elizabeth Bishop, mas confesso ter ficado bastante interessado em conhecer mais da vida da poeta norte-americana.

            E com vocês? Já ocorreu algo parecido? O que acham? É possível sentir-se atraído primeiro pela personalidade de um autor para só depois interessar-se por seus livros? E quais as influências do histórico de vida de um escritor sobre a percepção que temos de suas obras?